Só tenho a agradecer o convite de Cybeli Moraes, professora da Escola da Indústria Criativa da Unisinos Porto Alegre, responsável pela cadeira de Ética, Legislação e Comunicação, pela oportunidade de falar sobre Diferença e Inclusão. Propor para jovens entre 20 e 32 anos uma reflexão sobre o cotidiano de pessoas que têm uma deficiência, ou uma diferença marcante, foi um desafio que me emocionou muito. A seguir, um resumo do que falei.
Insisto em falar e escrever porque Diferença e Inclusão são questões que envolvem direitos e leis, mas dependem especialmente de sensibilidade. Tenho uma amiga arquiteta – Flavia Boni Licht – especialista em acessibilidade que, em um artigo, citou a frase de João Filgueiras Lima, também arquiteto: “Certas coisas não estão escritas no manual, fazem parte da consciência crítica de cada um”. A afirmação sintetiza o que penso de leis – necessárias, certamente! – e do que é criado para colocar ordem na desordem humana. Regulam, oferecem garantias, mas não são colocadas em prática como deveriam. Governos, empresas, instituições públicas ou privadas cumprem ordens, sem entender o cotidiano de quem tem uma diferença. Não conseguem colocar-se no lugar do outro e mudar a regra, se a situação pede. Assim, enquanto a burocracia discute como incluir, vamos encarando o cotidiano desse mundo “normal” que não vê na diversidade uma maneira de sair dos espaços institucionais e inventar, reinventar, mudar. A diferença necessita de olhares capazes de acolher e ousar.
Historicamente, a formação de grupos humanos sempre apontou para um fenômeno curioso. Ao mesmo tempo em que se criam traços de identidade, admite-se a exclusão de determinadas pessoas ou grupos. Certas características e comportamentos são bem-vindas e outras repudiadas. A sociedade reserva um lugar para as pessoas que fogem do padrão como se fossem incapazes – um lugar ancorado no preconceito. Quem não corresponde ao padrão determinado sofre vários tipos de discriminação.
Ninguém se admira com o apagamento da pessoa com diferença física, intelectual ou mental. Na Idade Média e em outros tempos obscuros, como no período do nazismo, a morte era a sentença para os que não correspondiam à “raça pura”. O que ainda reverbera entre nós. Por isso, precisamos falar sobre a diferença e combater o fantasma cruel da exclusão. Enfrentar o preconceito que carregamos é não ter medo das palavras. A fala, com atitude, tem condições de desacomodar conceitos e pré-conceitos seculares e apontar para a inclusão. Precisamos dar voz às pessoas, ouvir o que elas têm a dizer, deixá-las manifestar a curiosidade para entender o porquê do espanto diante de uma pessoa diferente.
A negação e a repressão são combustíveis para o preconceito. Reforçam a mensagem já instituída: cada grupo no seu lugar, fazendo o seu papel. Essa é a condição para que negros, grupos LGBTQi+, população indígena, ciganos, quilombolas e pessoas que têm uma deficiência sejam aceitas. O recado é: “Fiquem nos seus lugares!”. A experiência cotidiana deixa isso claro. Ninguém se espanta ao ver um negro como porteiro, operário ou uma negra como empregada doméstica. O homossexual como figura bizarra também não surpreende, assim como uma pessoa com nanismo sendo alvo de piadas grotescas ou divertindo o outro. Já nascemos em um meio incapaz de nos olhar de outro jeito e nos ver em outro lugar com naturalidade, falar e acolher.
É urgente mudar este olhar para as diferenças! Ensinar, aprender, dialogar, dividir saberes e experiências, trabalhar a cidadania e a crítica são compromissos que não podem ficar para amanhã. E esta é uma tarefa das famílias e dos educadores. Precisamos de sujeitos conscientes, comprometidos com a valorização da vida. Precisamos desacomodar certezas sacralizadas. Só a partir da incerteza, da dúvida, do questionamento é que vamos aprimorar nossa consciência social. Uma educação voltada para a diversidade tem condições de nos libertar da rejeição, o que passa pela simplicidade, jamais pelo extraordinário. Passa pelo acolhimento e pelo diálogo. Não se acomodar é falar, dar voz ao que repudiamos, instaurando a desordem cidadã. A instituição dos direitos humanos nos trouxe a ética, o respeito, a solidariedade, valores que precisam ser resgatados cotidianamente.
Minha reflexão se faz justamente sobre o lugar desse sujeito discriminado. Que posição ocupa em relação aos discursos que se fazem sobre ele? Submete-se? Resiste? Questiona? Desafia o estabelecido? Padrões clássicos de beleza, comportamento, talento, tamanho, origem e meio social? Não é possível anular as diferenças porque elas efetivamente existem, nem reduzir conquistas a dispositivos legais. Precisamos de muito mais para eliminar o preconceito resultante de um processo histórico e cultural que criou um modelo padrão, no qual o sujeito se inscreve desde o nascimento.
Cabe aos governos criar políticas públicas de inclusão. Repensar a diferença e não ignorar as dificuldades enfrentadas pelos cidadãos é um dever das administrações municipais, estaduais e federais, em sintonia com suas comunidades. Cabe às empresas entender os limites de uma pessoa com deficiência, estimular sua inserção no trabalho, orientar e não apenas jogá-la em uma função para cumprir a lei. O que desejo é alertar para a necessidade de prestarmos atenção ao preconceito que incorporamos e reproduzimos sem nos dar conta, especialmente através da linguagem. Portanto, a linguagem tem papel fundamental nessa construção. Voluntária ou involuntariamente, a fala traduz o olhar da sociedade, revela respeito ou discriminação. E nesse contexto, as pessoas que têm uma deficiência ficam vulneráveis e precisam criar mecanismos de defesa para sobreviver em um universo hostil.
No momento em que começamos a entender que a grande riqueza humana está na diversidade, esta discussão tem que ganhar mais fôlego. De modo geral, as instituições (públicas, privadas ou independentes), incapazes de sair do convencional, se enredam em normas na tentativa de facilitar um cotidiano que desconhecem. Desperdiçam a chance de aprender com uma pessoa diferente, ouvindo dela o que ela precisa. Não é a pessoa com deficiência que deve simplesmente descobrir maneiras de se adaptar. A sociedade tem seus deveres e precisa cumpri-los. Não podemos também cair nas artimanhas da superação. Até porque não se trata de superar e sim de viver com a deficiência da melhor maneira possível. Só vamos chegar ao desenvolvimento social que buscamos quando entendermos que cada um tem contribuições a dar, a partir do seu jeito de ser. SEM SUPERAÇÃO!
Minha luta é por inclusão e acessibilidade. Contra a discriminação, a exploração, o abuso de autoridade, o abandono, o abuso da infância, contra o trabalho escravo e a reiterada posição de discriminar, parecendo que não está discriminando. A diferença é a riqueza do mundo, independente de raça, cor, sexualidade, religião, deficiência física, mental, intelectual, surdez, dificuldade de visão, uso de cadeira de roda e outras características. Precisamos ficar atentos aos efeitos dos discursos sobre a diferença. É importante fazer pensar e evitar o sensacionalismo, que não contribui em nada para causa nenhuma. Precisamos de civilidade e humanidade ao falar sobre a deficiência, seja ela qual for. As pessoas com nanismo, por exemplo, ainda são alvos de chacotas, piadas e brincadeiras de mau gosto. Precisamos dar voz às pessoas diferentes sem assoberbá-las, sem exigir que provem o tempo todo que são capazes. Não precisamos “matar um leão por dia” para viver em harmonia com nossa deficiência no meio social em que estamos inseridos.
Perguntas que quero deixar aqui: como tratar de acessibilidade, inclusão e preconceito, sem cair em velhos clichês? No estereótipo, no constrangimento e na superação, questões reforçadas pela sociedade e endeusadas pela mídia! Ver o outro para além de qualquer barreira, com sensibilidade e respeito, é transformador. As pessoas que fogem do padrão instauram a desordem na sociedade normalizada e apontam para a riqueza de uma sociedade múltipla. Precisamos falar. Calar é consentir. A visibilidade e a fala trazem cidadania. Não somos nem vítimas, nem heróis. Estamos na vida como qualquer pessoa, com dificuldades, aptidões, sabedoria, sonhos.
Precisamos entender que não somos ninguém sem o outro. O eu sem o tu não existe.
Para finalizar, um trecho do livro infantil “A história mais triste do mundo” (Bolacha Maria Editora/2014), do psicanalista e escritor gaúcho Mário Corso: “Se as pessoas pensassem nas crianças, nem precisariam pensar em nós, os anões. Por que os trincos das portas precisam ser tão altos? As maçanetas redondas são uma maldade com os anões e com as crianças: para abrir é preciso ter uma mão grande. Ninguém se dá conta disso?”
Ao dar voz ao desabafo do anão Umberto, Mário Corso nos mostra o quanto crianças, assim como pessoas diferentes, dependem da atitude e do olhar do outro e o quanto é necessário incluir e respeitar. Às vezes, o vácuo é tão insondável que parecemos estrangeiros buscando um mínimo de dignidade em um mundo que insiste em não nos ver. Mas temos a Lei Brasileira de Inclusão! Temos direito ao que for necessário para a aceitação plena no trabalho, no lazer, na habitação, no transporte, na saúde, na educação. E temos o Dia do Combate ao Preconceito, 25 de outubro, data para refletir sobre todas essas questões.
Foto da Capa: Michelly Matos / Instituto Nacional de Nanismo
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