O recente transbordamento no lago Guaíba e seus afluentes, que por semanas inundou parcialmente diversas cidades, dentre elas a cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, e matou muita gente, vários animais, deixou milhares de pessoas desalojadas, morando em locais improvisados, e muito traumatizadas, e que também destruiu ou danificou prédios públicos ou privados, hospitais, casas, edifícios, apartamentos, fábricas, equipamentos, veículos, objetos, obras de arte, documentos, livros, e até mesmo memórias e sonhos, e boa parte da infraestrutura da cidade, ainda que causado por um volume imenso de chuvas, não é algo que pode ser considerado uma força maior imprevisível.
A própria existência de um sistema de proteção da cidade de Porto Alegre contra enchentes, realizado entre 1971 e 1973, quando foi construído o Muro da Mauá, com uma extensão de 2.6 km e três metros de altura, que integra um sistema de contenção de águas juntamente com diques e bombas elétricas, que deveriam devolver as águas que transbordassem para o lago, é a maior prova da previsibilidade desse tipo de inundação e de que a prefeitura estava ciente do seu dever de proporcionar um mínimo de segurança para a cidade. Do mesmo modo, evidencia que há décadas existe tecnologia disponível no Brasil para evitar ou mitigar esses desastres que, dependendo de cada circunstância, também poderia estar sendo utilizada por algumas das outras cidades que inundaram ou em risco de inundar no Brasil inteiro.
No caso de Porto Alegre não precisa ser muito inteligente para prever que enchentes como a de 1941, e até mesmo um pouco maior, pudessem acontecer, ainda mais com os ecologistas alertando, há décadas, no mundo inteiro, sobre o problema do aquecimento global, sobre a possibilidade de tempestades, furacões, inundações ou de novas áreas desérticas. Essas mudanças climáticas, causados pela destruição do meio ambiente, foram tratadas inclusive na badalada Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, chamada “ECO-92”, na cidade do Rio de Janeiro. De uns tempo para cá, teve até a “chata” da Greta Thunberg alertando sobre os problemas ambientais que iriam acontecer no planeta inteiro.
Além disso, os ambientalistas vêm alertando há décadas que o desmatamento causa o assoreamento dos rios, deixando-os mais rasos, o que faz com que o nível de alagamento em casos de inundações suba ainda mais. Isso não é novidade e, por isso, os ambientalistas insistem muito que devem ser preservadas as matas ciliares e nativas, pois elas amenizam esses problemas, inclusive a força das enchentes e das inundações.
Como se não bastasse em apenas um ano o Rio Grande do Sul enfrentou 10 episódios de chuvas extremas, conforme relata o pesquisador Rodrigo Manzione, da UNESP, na matéria publicada neste link.
Esta matéria, menciona inclusive que “ainda de acordo com o especialista em recursos hídricos da Unesp, a atual catástrofe é reflexo de um descaso antigo, ausência de medidas políticas, onde gestores de diferentes esferas administrativas deixam as comunidades habitar determinadas regiões de áreas de riscos, o que aumenta a vulnerabilidade das populações e não aplicam verba para a infraestrutura necessária das cidades. Não são problemas que se pode resolver da noite para o dia: é preciso investimento em planos de emergência e de evacuação. Muitos deles já estão sendo discutidos, ideias estão surgindo, mas durante a crise é difícil achar uma solução”.
Observe-se que Rodrigo Manzione não responsabiliza nenhum dos prefeitos, em especial, o problema vem de longe, o que absolutamente não afasta a responsabilidade do município pelos danos causados.
Mas não se diga que os atuais gestores de Porto Alegre desconheciam o risco de enchentes e a necessidade de recuperação do sistema de proteção da cidade. Tanto a Sra. Manuela D’Ávila quanto o atual prefeito, Sr. Sebastião Melo, em campanha, apontaram os defeitos evidenciando a necessidade de recuperação do sistema. Teriam sido proféticos?
Há poucos dias assisti a um vídeo publicado no Instagram, no qual o atual prefeito criticava o ex-prefeito Marchezan por ter perdido os recursos do sistema de proteção de cheias. Imagino que a imagem e a voz do prefeito não tenham sido feitas por Inteligência Artificial, mas nos dias de hoje isso não me surpreenderia. O ponto é salientar que os atuais gestores da prefeitura sabiam dos problemas referentes aos sistemas de proteção e de drenagem da cidade, até mesmo antes de assumirem o cargo, a optaram por investir os parcos recursos da prefeitura em outras prioridades. De certa forma, assumiram o risco por algo que tirou muitas vidas, jogou muita gente na miséria e destruiu boa parte da cidade.
Vale dar uma olhada na matéria publicada na Matinal, que evidencia que o problema era conhecido e preterido pelo município há bastante tempo.
E o que era previsível aconteceu, e o sistema falhou. As comportas não vedaram, estavam visivelmente estragadas, conforme noticiado pelo “O Globo”, em 06 de maio, Porto Alegre tinha apenas 4 das 23 casas de bomba de água da chuva ativas, e o prefeito reconhecia problemas, que o “sistema é falho e precisa ser “reinventado”.
Outrossim, na matéria publicada por uma das mais tradicionais empresas de jornalismo no Rio Grande do Sul, destaca que para “Walter Collischonn, hidrólogo da UFRGS, o atual sistema de contenção deveria ter sido eficaz em cidades como Canoas e Porto Alegre.
— Depende da região. Na Região Metropolitana, o sistema existente deveria ter evitado a inundação, exceto em São Leopoldo, onde pode ter excedido a própria capacidade de contenção. Em Porto Alegre e Canoas, o sistema tinha capacidade de suportar. Esses bairros deveriam ter sido protegidos. Houve falhas no sistema de comportas, que deixaram passar água. Os fechamentos não foram estanques. As casas de bombas não estavam disponíveis de forma adequada. Não conheço os detalhes, mas houve falha generalizada — destacou.
O especialista também falou sobre a região dos Vales, especialmente sobre Lajeado, Sinimbu e Roca Sales, que também sofreram com alagamentos.
— Em Lajeado, Sinimbu e Roca Sales não existe um sistema com diques. Isso seria inviável. Em Lajeado, o rio sobe cerca de 20 metros. Não existe dique de 20 metros. Teria de ter outra solução. O que parece mais adequado nos vales é um sistema de alerta mais qualificado — ressaltou.”
Ora, se uma prefeitura, ao dar o habite-se de um imóvel, seja residencial ou comercial, que conforme explicado no site da prefeitura de Porto Alegre, “é uma certidão expedida pela prefeitura atestando que o imóvel está pronto para ser habitado e que foi construído conforme as exigências legais estabelecidas pelo município”, é obvio que o imóvel deve ter sido construído em uma área autorizada pelas respectivas prefeituras, uma área urbanizada, e que deve ser segura, sem risco de a pessoa ter sua casa inundada e até de morrer afogada. Um imóvel que pode ser habitado e vendido, com habite-se da prefeitura não pode estar sujeito a inundações previsíveis. Aliás, seria no mínimo prudente que as prefeituras sequer permitissem que construções fossem realizadas e habitadas em áreas sujeitas a inundações ou deslizamentos, ainda que ilegalmente. Utilizem tais áreas como parques, plantem muitas árvores, elas irão ajudar na proteção das cidades, na melhoria da qualidade do ar, e amenizar a temperatura nos dias de calor.
Antes de escrever especificamente sobre o dever de indenizar dos municípios, referente às pessoas físicas e às pessoas jurídicas que sofreram danos, reputo importante reproduzir parte deste artigo publicado pelo Senado Notícias, por meio da Agência Senado, sobre o dever de prevenção das enchentes, que cabe conjuntamente a União, Estados e municípios. Eu sei que tem muita gente politizando, e quer jogar o problema exclusivamente no colo do político que ele não gosta, mas esse problema está no colo dos prefeitos, dos governadores e até do presidente, embora cada um deva cumprir com suas obrigações de uma maneira diferente.
“Prevenção é a palavra-chave quando o assunto é enchente, pois grande parte dos recursos para cobrir prejuízos é pública, ou seja, vem dos impostos pagos pela população. As ações da Defesa Civil têm recursos previstos no Orçamento da União e nos dos estados e municípios.
O Fundo Especial para Calamidades Públicas (Funcap) é outro instrumento financeiro de resposta aos desastres. A Sedec recomenda que fundos estaduais e municipais semelhantes sejam instituídos.
A política nacional de defesa civil prevê por meio do Sistema Nacional de Defesa Civil (Sindec), composto de órgãos federais, estaduais e municipais a recuperação socioeconômica de áreas afetadas por desastres. Entre as ações, está a recolocação populacional e a construção de moradias para populações de baixa renda. O Sindec deve fornecer cestas básicas de materiais de construção. Cabe à comunidade participar do mutirão de obras. O poder público é responsável também pela recuperação da infraestrutura de serviços públicos e dos ecossistemas.
Dois órgãos são essenciais nas ações de prevenção a enchentes em um município. A coordenadoria municipal de defesa civil (Comdec) é responsável pela execução, coordenação e mobilização de todas as ações de defesa civil no município. Sua principal atribuição é conhecer e identificar os riscos de desastres no município, preparando a população para enfrentá-los com a elaboração de planos específicos. Cabe ao prefeito determinar a criação de uma Comdec, mas a iniciativa pode partir das autoridades locais ou dos cidadãos.
Também é necessária a participação da comunidade nas atividades de defesa civil por meio dos núcleos comunitários de defesa civil (Nudecs), grupos comunitários que trabalham de forma voluntária. A instalação dos Nudecs é prioritária em áreas de risco e preparam a comunidade local a dar pronta resposta aos desastres.”
Sob o ponto de vista jurídico, ressalto que aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito, conforme dispõe o artigo 186 do Código Civil (CC), e que aquele que, por ato ilícito, causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo, conforme dispõe o arrigo 927 do CC.
Consideradas apenas essas circunstâncias, para que houvesse a responsabilização civil, leia-se, o dever de indenizar, seria necessária a culpa do respectivo ente da federação, ou seja, do município, do estado ou da União, ou de todos, dependendo do caso concreto.
Tomando-se as inundações em Porto Alegre, por exemplo, poderíamos questionar se houve culpa do município:
(i) pelas fortes chuvas;
(ii) por vários rios terem desaguado uma quantidade imensa de águas no Guaíba;
(iii) se o Guaíba está assoreado;
(iv) se as ocupações humanas e construções foram permitidas em uma área com risco de inundações;
(v) se havia um sistema de proteção contra enchentes e um sistema de drenagem das cidades;
(vi) se esses sistemas foram projetados e construídos para defender a cidade na hipótese de uma enchente dessa magnitude;
(vii) se esses sistemas funcionaram como deveriam;
(viii) e por que não funcionaram como deveriam, por exemplo.
Parece que pelos questionamentos dos itens (i) e (ii) o município não tem culpa alguma. Pelos demais itens há alguma ou muita responsabilidade, ainda que possa ser conjunta com outros municípios, e quem sabe até mesmo com o estado e com a União, a depender da situação específica, mas a meu ver, com todo respeito a entendimento contrário, preponderantemente a responsabilidade seria do município.
Ocorre que de acordo com o disposto no § 6º do artigo 37 da Constituição Federal, as pessoas jurídicas de direito público (União, Estados, Distrito Federal e Municípios) e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa. Temos aí a previsão legal da responsabilidade objetiva das pessoas jurídicas de direito público, com base na teoria do risco administrativo.
Portanto, não é necessário que tenha havido culpa, basta o nexo causal entre sua ação ou omissão e o resultado danoso, para que o ente público seja responsabilizado a indenizar os danos que causou. E no caso de Porto Alegre há o nexo causal uma vez que uma parte importante do sistema de proteção da cidade e até mesmo a drenagem da cidade não funcionaram como deveriam, e principalmente pelo fato de que a cidade deveria estar protegida. Assim, mesmo que não exista culpa do município nessa situação, ele deve responder pelos danos causados a terceiros. Aliás, entendo que o município responderia pelas perdas e danos ainda que não houvesse sequer o sistema de proteção, pois as zonas que inundaram são urbanizadas e densamente habitadas, e a urbanização de tais regiões e construção dos prédios foram autorizadas pelo município, ainda que há décadas. Isso sem falar nas construções de grandes prédios construídos em áreas aterradas e praticamente em frente ao Guaíba, que também foram parcialmente inundados.
Para aqueles que estranham a aplicação da responsabilidade objetiva do entes públicos, transcrevo trecho de um acórdão do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, transcrito no site do Jusbrasil (leia aqui).
“APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS. COLISÃO DE VEÍCULOS EM BARRA DE FERRO EXISTENE EM CALÇADA. RESPONSABILIDE OBJETIVA DO MUNICÍPIO. DEVER DE INDENIZAR.
- A responsabilidade do Município é objetiva (art. 37, § 6, da CF/88), caracterizada independentemente da presença de culpa da Administração, sempre que demonstrada a existência de nexo causal entre o dano sofrido e o fato administrativo consistente na conduta estatal omissiva
… Demonstrado o nexo de causalidade entre a omissão do Município na fiscalização da calçada irregular mantida pela corré e o acidente sofrido pelo autor, devido o ressarcimento pelos danos materiais sofridos.”
***
Pressuponho que se as cidades contassem com sistemas contra enchentes e de drenagem eficientes, se tivessem sido tomados os cuidados adequados, e realizadas as medidas preventivas, uma grande parte da catástrofe que se instalou no Rio Grande do Sul, poderia ter sido evitada, e que provavelmente os danos seriam muito menores do que foram.
Obviamente, isso teria demandado muitos recursos econômicos para que fossem realizados, melhorados ou reformados os sistemas de proteção contra enchentes e de drenagem nos diversos municípios, e imagino que tenha havido outros problemas mais urgentes ou prioritários aos olhos dos administradores públicos. Quem sabe tivesse sido necessário um rigor ambiental muito maior do que o existente para evitar a erosão e o assoreamento dos rios, maiores exigências legais para a avaliação de impactos ambientais de empreendimentos que de alguma forma impactem as terras, as matas, o fluxo das águas, etc, uma maior atuação conjunta dos três entes políticos, maior fiscalização ambiental por parte deles. Ainda é cedo para saber, e talvez as narrativas sejam equivocadas ou contraditórias.
E em que pese o nosso Código Civil determine que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes, em caso de força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado, para que fosse possível usar a justificativa da força maior ela precisaria ser imprevisível e esses danos ambientais são uma repetição do que aconteceu em 1941, foram sinalizados pelas enchentes do ano passado e são há décadas alertados pelos ambientalistas. São mais do que previsíveis como se destacou neste artigo.
Nestas circunstâncias, acredito que as vítimas dessa catástrofe, devam ser indenizadas, sejam elas pessoas físicas ou jurídicas. Essa indenização deve compreender os prejuízos diretos, os danos morais, lucros cessantes, pensões em casos de mortes ou invalidez, custeio de tratamentos médicos, psiquiátricos, ou seja, deve indenizar todas as perdas e danos que a vítima tiver suportado.
Por certo, a procedência de tais ações dependerá do entendimento do Tribunal de Justiça do RS, e também das cortes superiores, sem falar que as indenizações devidas podem quebrar os municípios e até mesmo o Estado do RS, se ele for responsabilizado por algo também.
Além disso, os danos precisarão ser comprovados, algumas pessoas perderam tudo, até mesmo os registros fotográficos das suas casas, propriedades, bens, e por trabalharem na informalidade podem não ter como provar seus lucros cessantes.
Desta forma, como cada caso é um caso, analise bem suas circunstâncias antes de tomar uma medida jurídica. Imagino que várias associações entrarão com ações civis públicas, requerendo que medidas importantes sejam tomadas, e inclusive pedindo indenizações para os prejudicados. Todavia, embora com mais chances de procedência do que geralmente têm as ações individuais, geralmente essas indenizações são menores, mais adequadas para o ressarcimento de pequenos prejuízos individuais.
Para quem sofreu perdas e danos maiores, por exemplo, perdeu um familiar, a destruição de uma casa, teve consideráveis lucros cessantes e danos morais, pleiteia pensões, terá de se mudar para um outro local, ficou doente, sofreu ferimentos, gastou com internações hospitalares, etc., considero mais adequado o ajuizamento de processos individuais que, por outro lado, tendem a ser mais arriscados.
Desejo a todos uma recuperação rápida, mas sei que para quem perdeu alguém que amava, que perdeu quase tudo, ou passou por uma situação traumática dessas, essa dor estará sempre presente.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube
Mais textos de Marcelo Terra Camargo: Leia Aqui.