Acessibilidade é um direito. Esse era o título de uma coluna que escrevi no final de 2019 junto com a advogada Adriana Monteiro da Silva no jornal Extra Classe. Afirmamos que os milhões de brasileiros com alguma deficiência precisavam consumir, ter acesso a bens e serviços, o que era um direito, e não devia ser encarado como mera formalidade ou burocracia.
A coluna fazia referência a um vídeo em que o dono daquela rede de lojas conhecida por espalhar Estátuas da Liberdade pelo país inteiro, resolveu atacar, via redes sociais, as medidas que possibilitam que pessoas com deficiência possam comprar em suas lojas: a tal da acessibilidade.
No vídeo, que foi retirado das redes sociais, o empresário e dublê de influencer digital reclama do piso tátil, que, na opinião dele, é inútil, pois acha que cego não sai de casa sozinho. Rotula as soluções de acessibilidade como um problema e que elas “enfeiam” suas lojas. O ápice se dá quando ele segura na barra de apoio do banheiro de sua loja e diz que aquilo deve servir para as pessoas se segurarem para vomitar. Por fim, diz em alto e bom som que tem nojo de tudo isso.
Suas falas são discriminatórias, sempre em um tom debochado e de desrespeito. Deixa claro seu capacitismo, essa palavra pouco conhecida que define o preconceito contra as pessoas com deficiência. Expõe seu capacitismo de várias formas: atacando as pessoas com deficiência, seus direitos e sua dignidade. Aliás, para ele, não são direitos, mas privilégios indevidos, que oneram os empresários, insinuando também que são resultado de uma decisão corrupta.
Na mesma ocasião, demonstrou sua contrariedade em ter vagas destinadas a pessoas com deficiência e idosas no amplo estacionamento de sua loja, que é tratada por ele quase como se fosse uma extensão de sua casa, o reino absolutista onde ele tudo pode e não um espaço coletivo onde todos deveriam poder entrar.
Passados mais de 4 anos desses fatos, poderíamos pensar que atitudes como essa são parte do passado. No entanto, soube de uma situação que me trouxe à lembrança esse vídeo antigo e que mostra, mais uma vez, as dificuldades enfrentadas pelas pessoas com deficiência para realizar tarefas que são simples para as demais pessoas.
Juliana é uma autista adulta que foi acompanhar um familiar em um atendimento médico. Marcou consulta e se dirigiu a uma conceituada clínica de sua cidade, uma capital da região Norte de nosso país. Ao chegar lá, observou que a vaga identificada reservada para as pessoas com deficiência estava ocupada por um veículo sem credencial de estacionamento.
Ciente de seus direitos, Juliana, de quem já falei na coluna da semana passada, relatou a situação para as funcionárias da clínica. Explicou que a vaga era destinada à pessoa com deficiência, portanto, deveria ficar disponível ser utilizada por pessoas com deficiência. Para sua surpresa, a recepcionista disse que nada poderia fazer pois o veículo irregularmente estacionado na vaga era do proprietário da clínica.
Como essa situação era recorrente, Juliana relatou a situação ao médico e mostrou que ele estava desrespeitando leis federais, estaduais e municipais, ao parar seu carro naquela vaga sem que tivesse direito para tanto. Aquele local poderia ser ocupado apenas quando houver no veículo credencial de estacionamento emitida pela Secretaria Municipal de Trânsito.
A explicação foi logo interrompida pelo médico que, imediatamente, perguntou se a paciente era empresária e que iria explicar “a situação dos empresários”. Disse que para a clínica “estar regular” deveria ter uma vaga para os “portadores de necessidades especiais” (o correto é pessoas com deficiência).
Disse, ainda, que mandou pintar o símbolo das pessoas com deficiência na vaga para que a clínica dele estivesse “regular” com a legislação, mas que ele era o dono da clínica e que aquela vaga era dele, pois ele, como proprietário, era quem determinava as regras da clínica.
Completou dizendo que, em vez de reclamar, ela deveria entender “a situação dos empresários”, que são submetidos a muitas obrigações e que a clínica era boa, os pacientes eram bem atendidos e, em tom de brincadeira, disse que “só não tinha vaga para “cadeirante”, o que, na opinião dele, não é nenhum problema.
Passam-se os anos, mas segue vivo um pensamento que nega os direitos da pessoa com deficiência com base em um discurso de que são ônus muito grandes a serem suportados por empresas e empresários. Esquecem eles que normas e direitos são para serem respeitados e não são um ato de bondade que a pessoa decide quando lhe é conveniente, ou não, cumprir. Mais: que um lugar que não permite a entrada de todos está discriminando quem fica do lado de fora.
E discriminar a pessoa com deficiência não é brincadeira: é crime.