Dia desses, sete da manhã, um rapaz invadiu o pátio de uma casa que alugamos para veranear em uma das praias de Palhoça/SC. Por acaso, estávamos despertos e ele deu de cara comigo. Estava vestido de forma modesta e tinha um shorts na mão. Disse ele, com algum constrangimento, que só queria se trocar. No susto, eu disse “aqui não!”. E lá se foi o moço correndo, creio que bastante mais assustado do que eu. Possivelmente, com medo de que fizéssemos um escândalo, que chamássemos a polícia etc. Era ponderação esse medo. Afinal, o rapaz era negro e sabemos como a polícia nos trata neste país.
No entanto, ver o rapaz assim vulnerável me deixou com um gosto amargo, sabor a capitão do mato. Sou uma mulher negra e sei que tenho na pele a insígnia da culpabilidade, não sou vista como vítima. A comprovação empírica vai se dando ao longo da vida. Quando não importa o outfit e já sei que receberei os olhares mais atentos dos seguranças dos estabelecimentos. Um olhar que me segue e que me faz manter as mãos longe da bolsa durante as compras. Suspeita em potencial, me cuido. Sei que quanto mais gourmetizado o lugar e mais escura for a pele, essa “atenção” só aumenta. Então, mesmo quando estou segura de que passei por uma situação na qual usualmente se faria um B.O., a verdade é que penso mil vezes antes de o fazer. Além disso, nunca me atrevi a ir desacompanhada a uma delegacia, nem mesmo para registrar uma perda de documento. É uma sensação de perigo iminente, pois, já dizia a canção: todo o camburão tem um pouco de navio negreiro.
É óbvio que, ainda assim, todes usufruímos, para bem e para mal, desse aparato do Estado. Seria ingênuo ou cínico dizer que não. A questão é como. Polícia para quem precisa, milícia para quem precisa, sorte e juízo pra quem têm, ainda mais se negro.
Por razões de trabalho, não poucas vezes escutei mulheres violentadas que foram maltratadas em delegacias. Colocadas sob suspeita – quando não ridicularizadas – em uma reiteração da violência sofrida. Todas brancas, porque as mulheres negras que atendi na mesma situação, por razões óbvias, sequer se animam a denunciar. Delicado, mas compreensível.
Em meu círculo íntimo, cujas tendências progressistas são a tônica, conheço poucas pessoas que se sentem verdadeiramente à vontade com a polícia. Creio que chamar a polícia em nosso país é, muitas vezes, contar com a possibilidade de gerar uma nova injustiça para alguém. Assim foi como ocorreu, no último sábado, com o entregador Éverton. Homem negro que foi esfaqueado por um homem branco, no bairro Rio Branco, e que, apesar do nome, é um antigo território quilombola da cidade de Porto Alegre. Éverton, a vítima, chamou a polícia. A polícia o prendeu com violência. E o homem branco, o agressor, do bairro Rio Branco, também foi detido, mas só depois de um atendimento humanizado que talvez minha geração nunca veja um negro receber.
Em São Paulo, a escola de samba Vai-Vai, ao falar sobre a cultura do Hip-Hop, criticou na avenida o que as mídias vêm mostrando há anos: a truculência e o aparelhamento ideológico racista de uma polícia que se serve de jovens negros como linha de frente. Eles não sabem, mas também estão na ponta de lança, na conta do extermínio. Ao mesmo tempo, reconheço na força policial um braço armado de um Estado que, na verdade, só finaliza violência começadas antes com a ausência de segurança alimentar, saúde e educação para o nosso povo.
Assim, entrar para a polícia pode ser a luz que aponta para o fim do túnel para o jovem negro. Uma grande amiga carioca, não branca, certa vez terminou um noivado com um rapaz porque este decidira tornar-se policial. Naquele momento me pareceu um ato extremo, mas ela dizia que se ele ainda não era da “banda podre”, era só uma questão de tempo. Tampouco creio que se possa generalizar, conheço alguns bons policiais que lutam contra a corrente da corrupção. À época fomos na formatura desse policial militar, um jovem negro cheio de músculos, virilidade e sonhos de fazer a diferença. Não sei no que deu. Aqui comigo torço para que ele não haja sucumbido.
Dizem que ela existe pra ajudar, dizem que ela existe para proteger, mas será que ainda acreditamos nela?
Foto da Capa: Reprodução de Redes Sociais