Repercutiu nas redes sociais esta semana (ao menos na minha bolha, grandemente composta por profissionais de comunicação), a coluna da escritora Giovana Madalosso sobre sua experiência de 15 anos em grandes agências de publicidade de São Paulo. No texto, publicado na edição do último domingo no jornal Folha de S. Paulo, ela denuncia para o público em geral que “por trás das camisas de marca que desfilam pelos restaurantes da Faria Lima, existem pessoas submetidas a condições de trabalho degradantes”.
Fiquei incomodada com o texto por alguns motivos. Primeiro, que na esteira de notícias escabrosas sobre em pleno 2023 pessoas sendo encontradas trabalhando em situação análoga à escravidão, chamar de “escravos de luxo” pessoas com formação universitária se submetendo voluntariamente a assédio moral no centro do capítal no país é uma comparação infeliz. Segundo, porque deixa claro o quanto nós, da classe média, cientes dos nossos privilégios, precisamos amadurecer na nossa relação com o trabalho.
Não há neste texto um debate sobre direitos trabalhistas de modo geral (que precisam ser cumpridos, ponto) ou sobre uma realidade em que pessoas sem conhecimentos dos próprios direitos quanto a quem recorrer em caso de abusos. Estamos falando de profissionais com curso superior completo, salários competitivos e redes de relacionamentos amplas. Pessoas que admitem que não abrem o jogo sobre o que passam em seus locais de trabalho tóxicos por medo de não conseguirem mais emprego no setor.
Quem trabalha ou trabalhou em ou com agências de publicidade e em redações jornalísticas conhece bem a realidade descrita pelo artigo de Giovana. Existem demandas absurdas todos os dias. E embora o texto passe a impressão de uma realidade em que existem basicamente feitores de um lado e pobres profissionais vitimizados do outro, a verdade é que existem também gestores corretos e, em contrapartida, funcionários ávidos por trabalhar mais do que o combinado. Sem falar nos que conseguem, mesmo nos piores ambientes, manter a sanidade apesar do entorno. Como em tudo, para dificultar a nossa vida, o mundo não é em preto e branco.
As empresas e os empresários de comunicação e o capitalismo são feios, sujos e malvados? São! Taí a situação periclitante em que nos encontramos como planeta que não nos deixa mentir. Mas será que a vida do povo daqui da planície não melhoraria um pouco se os profissionais que movem suas engrenagens dissessem mais nãos? Atenção, eu não estou falando em simplesmente sair fora. Estou falando em dizer não.
Os motivos que levam pessoas a se submeterem a tratamentos degradantes em locais de trabalho “de elite” são vários: cultura introjetada, costume, insegurança, medo irracional de perder o emprego, vontade de parecer melhor/mais forte/mais imprescindível do que os outros. Isso importa pouco para este texto. Importa mais é: não se submeter. Alguns dirão que é impossível. Peço licença para discordar.
E se o pior acontecer?
Ainda pequena, aprendi com meu pai a fazer sempre uma pergunta antes de tomar qualquer decisão que implicasse algum risco: “se eu fizer isso, qual a pior coisa que pode acontecer?” Na maior parte das vezes, a gente se dá conta de que tem condições de enfrentar o pior. (Anos mais tarde, descobri que se trata de um dos princípios do estoicismo, meu xodó filosófico.) No ambiente de trabalho, deduzi logo que a pior coisa que pode acontecer no caso de eu dizer não a um chefe é perder o emprego. Algo que, apesar de difícil, podemos enfrentar.
Assim, quando considerava o pedido (ou a ordem) recebida descabido, eu dizia não. E propunha uma solução alternativa. Algumas (poucas) vezes recebi o feedback de que era “reativa”, de que não me entregava ao trabalho como o fulaninho ou a beltraninha, que passavam semanas a fio trabalhando, muitas vezes em folga, sem esmorecer. Na maioria das vezes, porém, eu fui ouvida e a negociação provocada resultou em uma solução melhor (ou ao menos igualmente aceitável). Houve chefias malvadonas, que me puniram? Claro. Mas quem disse que relações humanas, com ou sem capitalismo envolvido, são simples?
Meu pai morreu muito cedo, com apenas 25 anos de carreira, quando recém havia assumido o cargo de diretor da multinacional em que passou a maior parte desse tempo profissional. Ele chegou a essa posição sem jamais ter aceitado uma reunião que fosse marcada para depois do horário do expediente. Ele não abria mão de ir para casa ficar conosco e argumentava que se não havia sido possível fazer o trabalho no horário combinado, o processo precisava ser revisto, porque estava equivocado.
Aliás, uma brincadeira que eu costumava fazer nas minhas relações com publicitários era como eles conseguiam todos os anos serem surpreendidos pelo Natal, a Páscoa, os dias das mães, dos pais e das crianças. Não era de admirar que, pegos à traição por essas datas, acabassem sempre precisando virar noites para entregar as campanhas urgentes. Se tem uma coisa que todos os meus bons gestores me ensinaram de diferentes formas é que planejamento salva. Até a resposta negativa ao chefe que abusa da boa vontade precisa de um plano.
Nós não somos insubstituíveis, é verdade. Nós precisamos trabalhar para viver. Mas também não somos descartáveis. O cliente nem sempre tem razão. Inclusive, se você der razão a um cliente absolutamente equivocado, estará desperdiçando o dinheiro que ele está pagando. Se entendemos o nosso valor, se compreendemos o que oferecemos, se cumprimos os nossos deveres e entendemos os nossos direitos, passamos de vítimas a atores.