Quando chega a criança ao mundo, chega com ela todo o universo, intacto. Os adultos que recebem a criança entram num revival, consciente ou inconsciente – também chegamos um dia ao mundo com o universo a bordo. No primeiro olhar à criança, passamos a ser uno e, por um breve e longuíssimo período de tempo – os 730 dias em que a criança segue o universo –, pais e filhos estarão misturados em puro amor. Essa dádiva pode, no entanto, não se realizar, pois o mundo criou a mais poderosa das mentiras: a família enquanto unidade social financeira desejável.
Com o capital resguardado aos seus integrantes, a instituição família passou a determinar a ordem da sociedade, relegando o amor ao segundo plano. Na Idade Média, as crianças chegaram a ser depostas de existência oficial até os dois anos. Não recebiam um nome sob a justificativa de que morriam com muita facilidade, mas verdadeiramente o que se instituiu foi a negação à vida plena, além dos significados do mundo.
Se a criança sobrevivesse, a instituição empoderada já teria soterrado a semente, de forma a não ameaçar o status quo. A criança deixava de ser a semente que trazia o universo para virar objeto, um corpo com funções, uma fração da família, herdeiro formal, e não um ser completo, independente, dotado de potencialidades. Mas o amor dos pais pelos filhos segue vivo em nosso coração, pois não podemos nos desfazer. Nós somos essa criança que chega e é nosso destino voltar ao universo.
“A criança é o pai do homem”, já nos disse o filósofo Walter Benjamin. A partir da experimentação da criança em escala, massa, peso, fricção… o mundo vai adquirindo contorno. “Na tribo, o velho é o dono da história, o adulto é o dono da aldeia e a criança é a dona do mundo”, percebeu o sertanista Orlando Villas Bôas.
Para ver a vida além do mundo, o adulto segue a olhar nos olhos da criança, na qual se enxerga e transcende. Amar a criança é amar a nós mesmos, é amar o universo. Amar a criança é separar os corpos irrelevantes – o filho que um dia precisou do corpo da mãe e do pai, um dia precisará de liberdade em seu longo caminho de retorno ao universo. A instituição família fará o possível e o impossível para manter o corpo sempre preso, em submissão. Mas a criança que somos é rebelde e não vai negar a Vida. Ela é Consciência.
Foto da Capa: Vera e Cássio bebê / Divino Fonseca/Arquivo Pessoal
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