A essa altura, já houve tempo para quase todo mundo se indignar com o texto sem noção do Washington Olivetto por uma pletora de motivos. Alguns deram o argumento da solidariedade para deplorar um texto alienado de um integrante da elite psicótica brasileira flanando seus privilégios durante um período de miséria e escala do autoritarismo para todos os demais. Outros alegaram simplesmente que o texto era ruim. Ambos estão certos: o texto é ruim e tão desconectado da realidade circundante que poderia muito bem ter encerrado com Olivetto e seu filho e o amigo de seu filho dançando no Baile da Ilha Fiscal.
Infelizmente, e aqui vai um comentário de alguém que trabalhou três décadas em imprensa diária, do ponto de vista da dinâmica atual dos veículos de comunicação, o texto pode ser considerado um sucesso. Viralizou, foi compartilhado, lido por todo mundo, dominou o assunto por dias – logo, foi um campeão de “engajamento” para a publicação que o veiculou, e gerou outras tantas respostas que vão da paródia brilhante à crítica igualmente sem noção. A indignação sem freios da turma preocupada sempre transforma em sucesso aquilo que deplora com seus manifestos online… Aliás, um parêntese: sobre resposta sem noção, minha preferida até agora foi a do Gregório Duvivier, ator/comediante que se tornou colunista de imprensa diária porque era a estrela de um canal de humor na internet e que se indaga, perplexo, quais são as credenciais para que se dê uma coluna na imprensa diária ao publicitário midiático Olivetto. Concordo plenamente. No meu mundo ideal, não teríamos a coluna deslumbrada de Olivetto – nem Duvivier em posição de fazer sua réplica “engajada”.
O que me fez ficar pensando não foi o quanto aquele texto era alienado, palavra que vocês aí deveriam resgatar inclusive no seu sentido político dos anos 1970. Nem a falta de conexão da realidade do Olivetto, vendilhão alçado acima de suas sandálias de mero mascate do capital em um país que começou a descer ladeira abaixo quando começou a transformar publicitários em celebridades. Acho ótimo que algumas máscaras caiam, como a da turma que transformou a palavra “criativo” em cargo sem um pingo sequer de ironia. Mas o que realmente me deixou refletindo é se parte da desconexão absoluta do texto de Olivetto com a realidade não era uma consequência inevitável do prestígio que sempre se deu nas letras brasileiras à crônica de jornal, com toda sua carga de ligeireza e superficialidade, especialmente aquela praticada em louvor aos aspectos “mágicos” do Rio, como um “gênero brasileiro”.
GÊNERO MENOR
Essa definição não é só minha, foi usada por vários intelectuais dedicados ao estudo da literatura no Brasil. Antonio Candido, por exemplo, unanimidade na academia nacional, assim se expressou no seu famoso prefácio “A Vida ao Rés do Chão”, escrito para apresentar o quinto volume da coleção Para Gostar de Ler, da Editora Ática, lançado em 1981: “No Brasil, ela [a crônica] tem uma boa história, e até se poderia dizer que sob vários aspectos é um gênero brasileiro, pela naturalidade com que se aclimatou aqui e a originalidade com que aqui se desenvolveu“.
Candido, nesse texto hoje considerado clássico, argumenta que a grande força da crônica é aquilo que poderia à primeira vista ser considerado sua fraqueza. Ela não é um “gênero maior”, pelo contrário, é um tipo de texto voltado a cavar a grandeza no que há de miúdo. Ele diz ainda que a crônica, na forma hegemônica que assumiu após os anos 1930, oferece, na sua despretensão característica, em sua “simplicidade, brevidade e graça”, camadas profundas de sentido muito ricas a serem exploradas para o leitor.
Candido escreve em um momento, os anos 1980, em que nomes como Carlos Drummond de Andrade e Rubem Braga ainda praticam com excelência a crônica lírica e despretensiosa que se tornou o paradigma do gênero ao longo de boa parte da segunda metade do século XX. O crítico comenta que, àquela altura, a crônica já havia abandonado a pretensão informativa que pautava seu antecessor nas páginas do jornal, o “folhetim”, deixando de “informar e comentar” para assumir um caráter de divertimento. Outro crítico, aliás, Alexandre Eulálio, equivalia a crônica ao gênero do “essay” em língua inglesa, numa afirmação que considero precipitada. A crônica brasileira não tem o rigor do ensaio literário americano (pode até ter mais beleza, mas muitas vezes não se organiza em um centro rígido com uma visão de mundo clara, é mais impressionista e desconexa).
Só que essas definições e análises, embora clássicas, referem-se a um outro tempo, e hoje a crônica de imprensa (ou de mídia, já que plataformas online como esta também servem de suporte para o gênero) sofreu uma transformação radical, menos nominal do que de forma.
OPINIÃO
Na contemporaneidade, a crônica lírica ao estilo de Rubem Braga é pouco exercida, e quando praticada é de uma banalidade atroz, a não ser por exceções louváveis como os textos de Luis Henrique Pellanda, por exemplo. Opinar, analisar e comentar voltaram a ser a tônica dos textos em espaços de imprensa. Aliás, em outro movimento correlato, dos anos 1990 para cá, os jornais foram gradativamente tornando mais indistintas as figuras do “cronista”, esse sujeito sem muito compromisso com a informação e sim com a forma final de seu texto, e a do “colunista”, que pode ser um analista com informações ou conhecimento privilegiado ou um palpiteiro que dá opinião sobre tudo escorado apenas em verve e feeling.
A multiplicação dos espaços de opinião em redes sociais em que cada feed pode virar uma coluna de opinião também é responsável por nublar as águas dessa distinção e deixar a nu uma questão que Candido, ao tecer uma teoria geral da crônica usando nomes de excelência como Paulo Mendes Campos, Drummond, Rubem Braga ou Rachel de Queiroz, não contempla em seu ensaio: em uma época de esfacelamento do cânone, um gênero literário não é composto apenas de seus melhores expoentes, e a ganga da mediocridade estatisticamente inevitável quando se tem uma inflação de textos em qualquer meio pode ter um efeito de erosão no panorama geral.
Um dos elementos chave para entender o pensamento contemporâneo, ao menos aquele que tenta evitar o conservadorismo reacionário, é pensar a partir de multiplicidades. Mais vozes, mais opiniões, mais visões de mundo, mais “lugares de fala” (no sentido estrito da expressão, que não deveria, ao menos, ser usado para interditar debate, como às vezes, infelizmente, acontece). Fica, assim, mais difícil aceitar essa crônica ligeira, despretensiosa, parcial por excelência, “conversa fiada” um pouco mais elaborada, como defendeu Candido, sem que haja revolta por aqueles que estão cansados de ser relegados ao pano de fundo.
Mesmo o tal “rés do chão” que a crônica consagrou nas vozes de Braga e Drummond é o de uma determinada fatia da população brasileira, incrivelmente provinciana, aliás, embora more no centro econômico ou político do Brasil. Rubem Braga, escrevendo seus Retratos Parisienses, coleção de perfis e entrevistas com grandes nomes da arte enviados para o maior jornal da então capital do Brasil, não cansa de descrever fisicamente as figuras que entrevista usando como referência os amigos de sua própria patota – Picasso é definido como um Portinari mais entroncado, por exemplo. João do Rio, em um dos textos de Vida Vertiginosa, apresenta um longo ensaio totalizante sobre visões políticas do “momento” e do “povo” brasileiros, a certa altura cita “as raças que o compõem”, e deixa os negros de fora da relação. E isso já há cem anos.
Assim, me parece inevitável que, no atual panorama do debate público, mais e mais crônicas de mídia deem origem de tempos em tempos a certos escândalos de interpretação. Diferentemente de muitos, considero isso um sintoma, mas não um problema. Visões por demais generalizantes são hoje mais perigosas, o que depõe contra a ligeireza que está no centro mesmo do gênero. Não acho que os absurdos de Olivetto sejam uma peculiaridade singular, o que é novidade é a repercussão agora que os tempos mudaram.
E considerando o quanto a crônica traz, inclusive no nome, sua vinculação com o tempo presente, acho bem válida a execração periódica de cronistas que não captaram as mudanças na maré do tempo, dado que é precisamente para isso que eles servem.