Algumas palavras se perdem diante a imensidão dos conhecimentos modernos. Tantas explicações para fenômenos e outras situações que se tornam problemas sem de fato o serem. As visões que temos sobre os fatos constituem-se de perspectivas e ângulos. Talvez por isso muitos já comecem a esquecer os efeitos benéficos das antigas palavras e sua sonoridade tão enigmática quanto restauradora.
A fonte antiga resgatada pela figura do Alter Rebe de Lubavich, em seu célebre livro Tanya, nos indica duas palavras extraídas do aramaico: Butsina deKardunita (בּוּצִינָא דְקַרְדּוּנִיתָא). A simples tradução de a luz da escuridão é sinal de uma imensa quantidade de discussões salutares a todo aquele que se aventura na leitura de textos antigos. Mais profundo que isso é justamente o comentário que Yosef Wineberg faz sobre ser entendido como uma ocultação da luz, o que justamente dá liberdade para a coisa se ver como independente dos desígnios de seu criador. Essa independência, tal como um estágio importante que configura a coisa como algo existente, também delimita a incapacidade de perceber-se como algo que necessariamente precisa ter sido criado por algum meio para chegar ali daquele jeito.
Em um primeiro momento, essa conversa preliminar aparenta apenas a um propósito místico, com roupantes extravagantes de um vocabulário desconhecido por nós. Contudo, gostaria que servisse para um assunto mais delicado e esse, sim, de maior dificuldade de entendimento do que exposto aqui em nossos dois parágrafos anteriores.
A sensação avassaladora da solidão.
E diante de estar só o mundo moderno respondeu muito rapidamente, criando dois novos problemas: o problema dos excessos, o que nos leva a estados emocionais ansiosos; e o problema da falta, a qual leva a estados emocionais depressivos. Em ambos os casos temos um grande prejuízo na capacidade de percepção da realidade. Gostaria de fundamentar esse argumento com o simples fato de que nosso pensamento nos restringe a considerar a ansiedade como uma tentativa quase heroica de darmos conta da realidade, enquanto a situação depressiva é a perda da esperança.
O que me parece mais interessante para uma perspectiva realista dos verdadeiros estados emocionais ocultados por trás da ansiedade e da depressão é podermos perceber uma profunda ligação com a nossa capacidade de integrar o eu, essa massa de experiências e sensações muito pessoais organizadas de alguma forma, com as coisas que não são nosso eu, isto é, o resto todo da composição da realidade. Quando o excesso de conhecimentos nos aflige, jogamos uma grande quantidade de cortisol das suprarrenais para aliviar um desconforto emocional. Essa quantidade gera ansiedade em excesso. E o problema desse excesso a longo prazo é justamente a sobrecarga sobre os neurônios. Ao não resolverem esse problema com o uso de corticoides temos um edema. Nossa chegada ao estado depressivo se dá nesse momento em que o edema é gerado. É quase como se houvesse um pequeno apagamento da sensação, ainda que a experiência indesejada fique alojada lá.
O que podemos fazer para ressignificar um estado emocional que se encontra há tanto tempo alojado dentro de nós?
Precisamos de um espelho para ver isso. É quando precisamos de um suporte, de outra pessoa ali a pensar conosco, a nos propor ver no reflexo dos olhos a imagem ali desenhada. Uma pergunta precisará ser realizada: “Será que você…” Uma pergunta entre tantas coisas que pararam de ser feitas, pois cessamos os pensamentos sobre um funcionamento interno. Como funcionamos para nós mesmos? Esse simples “será que você…” atua de maneira ativa, une a camada mais superficial de nosso córtex pré-frontal a uma emoção contida em nossa amígdala cerebral. Por ali veremos passar o sistema límbico e a memória daquilo que somos, fomos ou… gostaríamos de ter sido. A personalidade é ativada e nesse pequeno instante talvez sentíssemos uma lágrima cair sobre nós mesmos. “Mas o que fiz comigo esse tempo todo?” É que, desse ponto em diante, a esperança recomeça. Um ser humano pode ser salvo de si mesmo para si mesmo. O cérebro remodela-se, a energia atávica ganha vivacidade, tal como a música em uma orquestra, com cada instrumento servindo como motor para a próxima tessitura entre as notas.
E não podemos deixar de pensar que o Tanya já tenha em suas notas a sabedoria dos antigos hebreus. Ela foi empregada como um aviso para nós modernos. O homem que não se voltar para si mesmo (ךל ךל), como vemos na Jornada de Abrahão ao sair de Ur dos Caldeus e dirigir-se para Israel (Gênesis 12:1-3), irá ficar perdido no deserto de seus pensamentos empobrecidos. O afastamento de si mesmo, o problema maior para não se perder no deserto é fazer algo com o tempo que nos é concedido, na qual uma nova civilização irá nascer, possa também ter os requisitos para germinar emoções por vezes difíceis, mas muito contrastantes com os mesmos significados que nos acostumamos. Essa nova possibilidade trazida pelo espelhamento neural, fonte da psicoterapia moderna, é parte da Jornada desse velho homem que sai da terra dos ancestrais para um novo território. Daí também a escuridão possuir uma luz. Há o desejo de que essa luz também possa ser esperança de dias melhores que ainda não tivemos em vida.
Estevan de Negreiros Ketzer é psicólogo clínico, Doutor em Letras (PUCRS) - Email
Referências:
LIADI, Shneor Zalman de. Likutei Amarim Tanya, vol. 4. Tradução de Rabino Yehoshua B. Goldman. Rio de Janeiro: Editora Beith Lubavitch, 2009.
CHABAD. Daily Tanya: Shaar Hayichud Vehaemunah, end of Chapter 4. Chabad-Lubavitch Media Center. New York. 2024. Acesso em: 9 set. 2024.
KAPLAN, Rabino Ariey. A Torá Viva. Tradução de Adolpho Wasserman. São Paulo: Maayanot, 2013.
SOLMS, Mark & TURNBULL, Oliver. The Brain and the Inner World: an introduction to the neuroscience of subjective experience. New York: Other Press, 2002.
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