“A história de cada uma delas sempre se misturava no jeito como cada uma contava a história do amor deles. Sonhavam juntas.” Carla Madeira.
Calhou juntar que, no final dos anos 80, eu ainda frequentava bares e já começava a trabalhar como psiquiatra. Por mais que fossem variados os assuntos do dia, no consultório, e os do bar à noite, o mais frequente nos dois horários era o mesmo: o amor. Certa feita, estávamos a três no bar do Beto, em sua antiga localização na Venâncio, com o jornalista Sérgio Saraiva e um amigo cujo nome eu omito por uma questão de sigilo, base da ética em comum entre um salão de bar e uma sala de consulta.
O amigo, é claro, falava de amor. Havia acabado de perder o seu, depois de ser dele ejetado. Estava inconsolável a ponto de eu pensar em atendê-lo no dia seguinte, com medicação ou terapia, no outro cenário. Mas era amigo, e eu só podia ouvir. Ouvir é modo de dizer; eu ouvia pela milésima vez, pois ele dizia aquela dor de forma repetida, como costuma acontecer nos bares e nos consultórios. Foi quando o Saraiva, sem ter mais o que dizer, começou a cantarolar Coração Leviano, do Paulinho da Viola. Eu e o amigo cantamos juntos.
Já estávamos em estado suficientemente adiantado de chopes, mas nem isso trouxe alguma afinação para aquele trio pouco melódico. Mas havia, sim, uma melodia, sustentada por uma letra que proferia conteúdos sábios como: “Ah, coração leviano, não sabe o que fez do meu (mas trama)”. O amigo se detinha nessa parte como se precisasse repeti-la. Era a que mais entoava, junto com uma outra: “Ah, coração, teu engano foi esperar por um bem/ De um coração leviano que nunca será de ninguém”.
Cantávamos juntos. Conhecíamos a moça e não poderíamos assegurar que o seu coração fosse mais leviano do que o do amigo. Havia, no caso, uma interação de corações que cérebro nenhum poderia alcançar. Mas não se tratava disso. Estávamos ali com os nossos próprios corações ouvindo um amigo amorosamente enlutado que desfrutava de empatia e melodia, mas não só. Ele contava agora com palavras para expressar o que sentia. Ele cantava, logo dizia, a ponto de acalmar-se e a gente poder retomar um outro assunto importante, que era a queda vertiginosa do nosso time no Campeonato Brasileiro.
No dia seguinte, pensei em levar o clima sonoro do bar ao consultório e cantar para um paciente que padecia da mesma desilusão. Até o fiz, com algum efeito positivo, mas que parecia ter a ver com ele agora se sentir mais saudável do que o seu psiquiatra. Na noite seguinte, o time perdeu de novo, mas não o amigo. Chegou radiante no bar, dizendo que havia encontrado um novo amor. Não conseguíamos explicar a rapidez daquele restabelecimento, mas o Paulinho da Viola, em outra canção, conseguia: “A marca dos meus desenganos ficou, ficou/ Só um amor pode apagar”.
A explicação da letra foi certeira, mas, como ainda estávamos no segundo chope, a desafinação foi enorme.
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Foto da Capa: Gerada por IA