09 de novembro de 1969. Era domingo, quando, a pretexto de colherem o depoimento do padre, sobre suposto envolvimento de outras pessoas em atos de terrorismo, policiais, a serviço da ditadura militar, conduziram o sacerdote até o famigerado Departamento de Ordem Política e Social. Logo, ele viu que buscavam mesmo era a sua prisão.
A acusação era tão vaga quanto inconsistente: envolvimento com a subversão. Ele era o padre subversivo, o que havia mantido contato com um tal frei inimigo da ditadura. A acusação foi de que o padre teria albergado o frei, por uma noite, na sua paróquia, mesmo sabendo que ele estava sendo perseguido pelas forças repressoras. Fato que foi determinante para a sua prisão naquele momento.
A prisão preventiva foi decretada pela Justiça Militar de São Paulo. Então, o sacerdote foi transferido para aquela cidade, onde permaneceu encarcerado por um ano, no presídio Tiradentes, conhecido como “presídio da ditadura.”
– Padre comunista! Padre comunista! – diziam para ele.
De todos os padecimentos que o ser humano pode agasalhar, o mais dolorido é, sem dúvida, a dor da alma. A injustiça, a humilhação, o padecimento, a saudade, o medo, o terror, a desesperança, ao longo de uma prisão sem causa, fragilizam a alma de qualquer ser humano. É quando tudo dói. Com ele não foi diferente. O cárcere provocou uma chaga profunda na sua alma.
Ali, atirado ao submundo de uma sala infecta, sem qualquer contato com o mundo exterior, ele permaneceu. Mas era preciso viver com as cicatrizes, ele sobreviveu.
Aos 47 anos de idade, perdeu as condições para exercer o sacerdócio, o que se deu pela perseguição política sofrida após sair do cárcere. Afinal, ele era o padre subversivo comunista.
– É o padre subversivo! É o comunista!
Depois, foi impedido de exercer o magistério universitário, como Doutor em Filosofia. Formado pela Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, seu currículo revelava formação esmerada, realizada em grande parte no exterior. “Estudei na Itália, Suíça, Alemanha, Portugal e Áustria. Fui fundador da Faculdade de Filosofia Nossa Senhora da Imaculada Conceição” – dizia o padre, indignado. Mas nada disso foi levado em conta. Ele permaneceu na miséria até o último dia de sua vida, porque jamais houve a possibilidade de retomar as suas atividades.
– Padre comunista! É o padre comunista subversivo! Aquele que ficou preso em São Paulo.
Os últimos anos foram também de muito sofrimento, quando os amigos paroquianos o auxiliaram com dinheiro, comida e o que fosse necessário para sua sobrevivência. O sorriso dele agradecia. Ninguém foi capaz de tirar o sorriso daquele rosto. Afinal, foi o que restou na sua vida. Mais tarde, ele descobre que está com câncer, sofria dores muito fortes, terríveis, a vida seguia, ele sorria.
Por fim, só para não esquecer… no Brasil, houve um padre que foi encarcerado porque ajudou um frei. O padre jamais conseguiu retomar a sua vida, o frei não sei.
Ah, domingo era quarta na prisão. O dia das visitas.
Nota: Texto baseado nos diários de Pe. Manoel Valiente, que permaneceu preso por um ano em São Paulo durante a Ditadura Militar.
Maeve Phaira é natural de Porto Alegre, pesquisadora, jornalista e advogada. Autora de Berlim em Chamas, Nenhum Hectare foi Devassado – Salve a Amazônia- e Cidade sem Mar (raizelferreira@yahoo.com.br).
Todos textos da Zona Livre estão AQUI.
Foto da Capa: Gerado por IA / Freepik