Tomava uma salada de fruta na banca 40, do Mercado Público de Porto Alegre, com uma amiga e parceira de trabalho, quando ela chegou de mansinho com um sorriso envergonhado escondendo a parte sem dentes, baixinha, magra, negra, olhos vivos e brilhantes, roupas já gastas e limpas, aparentava uns 70/75 anos, com uma sacola grande na mão. Contou que ainda não havia almoçado, mas que estava com muita vontade de comer um doce e perguntou se eu podia comprar para ela. Perguntei se não preferia uma refeição, mas respondeu que o croissant com chocolate e morango estava ótimo!
Enquanto esperávamos, ela me contou que se chamava Ondina, que veio do interior de São Gabriel bem moça, e que morava no bairro Glória. Em Porto Alegre, tinha casado, descasado, casado de novo e ficado viúva, e parido quatro filhos, que estavam espalhados pelo Brasil, e estava sozinha no mundo. Uma história contada em fatos, com suavidade no olhar, mas com solidão na voz. Foi quando chegou o croissant e ela me agradeceu, feliz da vida feito criança, me desejou saúde e felicidade na caminhada, e se foi embora, pois disse que preferia ir caminhando. Essa história vivida com a dona Ondina nos conta muito sobre a situação da velhice no Brasil.
Quem são nossos Velhos e nossas Velhas?
Conforme dados disponíveis, dos 33,4mi de pessoas 60+ no Brasil, a maioria é negra e do sexo feminino, 58% delas possuem comorbidades (2).
Segundo o IBGE, o país tem 7,7 milhões de trabalhadores ocupados com mais de 60 anos. Mais da metade atua no setor de serviços e depende da renda emergencial de R$ 600. Em 24,9% dos lares brasileiros as pessoas idosas contribuem com 50% ou mais da renda domiciliar. Conforme a última PNAD, o número de pessoas 60+ no mercado informal aumentou 36,6% desde o início da pandemia, chegando a 4,094mi.
Quanto à educação formal, 32,8% dos seniores se declaram analfabetos; 46,5% entre 01 a oito anos de estudo. Com relação à moradia, 83,4% moram com suas famílias e 14,9% vivem sozinhos(1).
Assim, o cenário da maior parte da velhice brasileira está mais próximo das periferias brasileiras do que dos bairros nobres. Porém, o envelhecimento é fato em todos os lugares da população brasileira, em qualquer nível socioeconômico.
Velhices Plurais
Há que se considerar os pilares da diversidade quando se trata do envelhecimento. Afinal, com sorte, todos envelheceremos. População negra, lgbtqiapn+, mulheres, indígenas, população de rua, imigrantes, portadores de HIVe Aids, pessoas com deficiência, neurodivergentes, entre outros grupos minorizados. É importante ponderar que ninguém fica separado em caixinhas. É altamente possível que uma mesma pessoa se inclua em mais de um grupo oprimido. E encontraremos essas diversidades em todas as classes socioeconômicas. Claro que com mais ou menos camadas de privilégios. Assim, é preciso que a gente aprenda a olhar a velhice de uma forma cada vez mais plural e individual.
Para cada grupo oprimido, seja o de mulheres, negros, lgbtqiapn+ … há características em comum, que permite que tracemos perfis e estratégias de atuação no envelhecimento. Lembrando que quando a gente limita e reduz em caixinha, não enxerga todas as possibilidades e potencialidades existentes.
Estereótipos e Preconceitos
Espero que assim a gente escape dos estereótipos. Infelizmente, eles ainda são muito encontrados nas campanhas de empresas, conforme os resultados da pesquisa Oldversity, feita pela Croma:
- 72% dizem que as lojas não estão preparadas para lidar com diversidade e longevidade,
- 70% afirmam que a propaganda não é genuína sobre esses temas,
- 28% apenas creditam autenticidade ao discurso de diversidade das marcas.
- 29% apenas dizem que as marcas são verdadeiras ao falar de longevidade.
Com relação ao mercado de trabalho, as pessoas acreditam que há ainda muito preconceito na contratação de funcionários:
- 82% acreditam que há preconceito em contratar mais velhos.
- 62% acreditam que há preconceito em contratar pessoas com deficiência.
- 56% acreditam que há preconceito em contratar negros.
- 53% acreditam que há preconceito em contratar LGBT+.
Economia Prateada ou Ecossistema da Longevidade?
Faço parte do Movimento LAB60+, um laboratório social onde sou uma das lideranças, e nele partilhamos do conceito de Ecossistema da Longevidade compreendendo o macroambiente no qual estão inseridos todos os níveis do Estado, a Sociedade Civil, Terceiro Setor, Empresas, Universidades, Startups que atuam com foco na longevidade, para todas as idades. Pois atuar para longevidade significa, por exemplo, pensar em educação para o envelhecimento desde a infância até soluções para a velhice avançada, se possível integrando ao máximo todas as idades. Pessoalmente, compartilho dessa visão sistêmica, orgânica e inclusiva.
Silver Marketing
Percebo uma abordagem do público sênior pela grande maioria da área privada apenas como mercado consumidor, sem se dar conta do seu papel social e de que o seu futuro está conectado a ele, pelo natural envelhecimento da população.
E, como vimos, mesmo as empresas que estão se expondo ao público sênior oferecendo seus serviços e produtos, estão presas a estereótipos e preconceitos, pois não conseguem mostrar autenticidade na sua comunicação. O que fazer? Contrate quem entende sobre longevidade e envelhecimento. Pesquise sobre seu público. Aprenda.
Lembre que nossos mais velhos, na sua grande maioria, estão na base da pirâmide socioeconômica do país. Nela, há um grande mercado, mas um dinheiro contado. Quanto mais alta for a renda do público sênior que você quiser atingir, mais aguerrida também será a concorrência.
O Papel do Estado
Se o Ecossistema da Longevidade fosse uma Orquestra, o Executivo Federal deveria ser o Maestro. O envelhecimento, conforme a ONU anunciou em 2019, é uma das quatro megatendências mundiais. A nossa pirâmide etária vem se transformando há anos, e este ano já temos 63% da população com pessoas com mais de 30 anos. Em 2050, o Brasil será o sexto país mais envelhecido do mundo.
Até agora, como país, temos tratado reativamente questões previdenciárias relativas às pessoas aposentadas, bem como questões de saúde e assistência social. E isso de uma forma departamentalizada e pontual. Porém, a questão demográfica demanda muito mais do que isso. Envelhecimento e longevidade é um tema transversal, interseccional que necessita de estratégias e políticas da gestão pública.
Esperaria do Estado conectar os atores do Ecossistema da Longevidade, articulando-os e potencializando-os, projetando o futuro, fomentando a pesquisa e o empreendedorismo. Mas cadê o Ministério da Pessoa Idosa? Penso que uma Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa Idosa na estrutura do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, é pouco para um grande desafio e uma missão urgente.
E a Dona Ondina?
Retornei várias vezes depois ao Mercado Público, mas nunca mais encontrei Dona Ondina. Espero que ela esteja bem, mesmo que solitária. Espero que quando tiver vontade de comer um docinho, encontre alguém que possa comprar pra ela. Espero que mesmo com todas as dificuldades que enfrenta na sua velhice, consiga manter seu olhar suave e sua voz mansa.
(1)Última PNAD e Pesquisa Nacional da Saúde.
(2)Estudo Perfil das Pessoas com 60 Anos ou Mais / DIEESE 2021
Foto da Capa: Danie Franco / Unsplash