Naquela tarde chuvosa, entrei no trem tentando afastar o desconforto do procedimento feito pouco mais de uma hora antes. O dente ainda doía. Sessenta minutos bastaram para o efeito da anestesia passar, trazendo de volta o arrependimento de não ter ouvido o dentista meses atrás. Um tratamento de canal teria resolvido o problema, mas as atribulações do dia a dia me fizeram adiar uma solução tão simples. Foi um descuido meu, e agora pagava o preço pela negligência com a própria saúde. Ainda assim, não deixaria que esse contratempo me impedisse de seguir adiante. Tomei um analgésico, confiando que sua eficácia me ajudaria a enfrentar o restante do dia.
Não sei se foi o remédio que fez efeito ou se o entusiasmo dominou minhas emoções a ponto de me fazer esquecer a dor. O fato é que, em questão de minutos, eu já me sentia melhor. Assim que o trem parou na estação, posicionei-me em frente à porta, ansiosa para sair. Lutei contra a vontade de passar apressada pelas pessoas que se atravessaram em meu caminho e passar logo a catraca. Minha educação me conteve; não seria elegante sair atropelando desconhecidos. Respirei fundo e contive os passos: de qualquer forma, eu chegaria ao meu destino.
Caminhei pelas ruas de Porto Alegre no piloto automático. Ainda precisava almoçar antes do evento com outros escritores, e o tempo não parecia estar a meu favor. A dor de dente já havia se dissipado e, se não fosse pela necessidade de comer, eu nem teria me lembrado desse pequeno incômodo. Mas logo percebi que a anestesia ainda não havia passado completamente quando, tentando mastigar, alguns pedaços de comida escaparam.
Ao sair do restaurante, uma pontada de inquietude apertou meu estômago: a Praça da Alfândega, repleta de pessoas e livros, me trazia uma sensação simultaneamente estranha e boa. Porto Alegre tem esse poder de despertar em mim uma paz interior que raramente encontro em outros lugares. Uma espécie de magia sem limites, um sentimento de pertencimento a algo que, embora às vezes pareça distante, sinto cada vez mais próximo. Sinto-me bem em Porto Alegre e, se pudesse, passaria ali muitos dias da minha vida — especialmente durante a Feira do Livro.
Esse relato é da Feira do Livro do ano passado, quando lancei meu livro Nada Será Como Antes. Aquela tarde chuvosa, com dor de dente, parecia uma frustração insignificante diante de tantas outras que já havia vivido. Enfrentei muitos percalços, nem todos inevitáveis, mas a determinação de estar ali me ajudou a superar cada um deles. Era minha primeira vez participando de uma sessão de autógrafos na maior feira de livros a céu aberto da América Latina, e isso não era pouca coisa. Chegar até aqui não foi fácil; enfrentar meus próprios demônios e me assumir como escritora exigiu coragem. Assim, nada me impediria de continuar na jornada de me tornar a mulher que sempre quis ser.
Desde a infância, os livros despertaram em mim uma infinidade de sentimentos positivos. Muito pequena, sonhava em ter uma biblioteca em casa e, assim que comecei a decifrar as primeiras palavras, já desejava escrever meu próprio livro. Esse objetivo, embora demorado, nunca foi esquecido. Por muito tempo, fui apenas leitora; cursei Letras, especializei-me em Literatura Contemporânea e me tornei uma devoradora de todo tipo de ficção. Apesar de ter escrito várias histórias, foi só aos quarenta anos que encontrei a coragem necessária para publicar meu primeiro romance. Com a maturidade, veio também a força para arriscar.
Demorei a começar, mas, uma vez que tomei essa decisão, sabia que não iria parar mais. Havia muitos anos de atraso em meu currículo, e passei tempo demais presa às minhas inseguranças e à incapacidade de mostrar meu potencial. Ao decidir escrever, abri-me para o mundo. Meus textos não ficariam mais trancados em gavetas; eles voariam em busca de leitores. Essa era a mulher que levei décadas para construir, e este era o lugar onde eu queria estar — nada me tiraria dali.
Não posso afirmar que meu livro tenha batido recordes de vendas, mas tudo ocorreu como eu havia imaginado. Encontrei outros escritores, compartilhei minha experiência como escritora independente, conversei com leitores e troquei ideias valiosas. No final daquele dia, voltei para casa realizada. Havia superado minhas próprias expectativas, reafirmando minha identidade como escritora. E, naquele momento, a dor de dente já não ocupava meus pensamentos; havia questões muito mais importantes em minha mente, como continuar escrevendo para repetir essa alegria em outros momentos.
Na mesma semana, lancei mais um livro: a antologia Quebra-ventres, organizada pela escritora Helena Terra. Em 2024, estou programada para autografar a antologia Enchente, que tive o privilégio de co-organizar com outros autores. E, se tudo der certo, em 2025 continuarei firme nesse caminho, dando vida a novos projetos, colaborando com outras vozes e ampliando ainda mais os horizontes que a escrita me trouxe. A cada passo, sinto que minha trajetória se consolida, e a autora que levei tanto tempo para descobrir se faz, dia a dia, mais forte e mais presente.
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Foto da Capa: Freepik