Para lembrar um grande cronista e escritor, que se foi há exatos 37 anos, em abril de 1986, e que deveria ser mais lido:
- O frágil José Carlos Oliveira – 1,59m de altura, quase sempre menos de 50 quilos. Carlinhos para os íntimos, uma cambaxirra para Rubem Braga – emerge como um monstro, um tsunami de angústia e de virulência em o Diário Selvagem. O livro abrange boa parte dos últimos 15 anos de vida do cronista mais intenso de sua geração e mostra como Carlinhos de Oliveira transcendia a imagem de personagem trágico que se expunha no caráter confessional de suas crônicas, exaltando a angústia e a depressão que só aumentavam com o passar dos anos. Através de seu diário é possível conhecer tanto o lado mefistofélico de um escritor talentoso e problemático quanto algumas passagens importantes da história do jornalismo, do Rio e da boemia. Há também relatos escatológicos, como seus problemas com as hemorroidas e seus dentes apodrecidos, detalhes sobre as suas masturbações, espaços para pequenas vinganças e confissões de invejas, paranoias e inseguranças.
- No Rio, para onde se mudou no começo dos anos 50, sua base passou a ser os bares, como Degrau, Lucas, Alcazar, Gôndola, Fiorentina, Zeppelin, Jangadeiro e Veloso (hoje Garota de Ipanema). Nesses lugares, Carlinhos pontificava teses, catava subsídios para sua coluna e rebatia com veemência o que havia escrito anteriormente. Um lugar se destacava, o Antonio’s, onde a partir do começo da década de 70, Carlinhos de Oliveira transformou em segundo lar. Lá, ele convivia com Jaguar, Tarso de Castro, Fausto Wolff, Roniquito, Walter Clark, Antonio Callado, Vinicius de Moraes, Tom Jobim e Chico Buarque. Lá, Carlinhos de Oliveira foi expulso e readmitido dezenas de vezes pelas suas incontinências verbais e urinárias. Boa parte desse roteiro boêmio foi narrado em outro livro, O Homem na Varanda do Antonio’s.
- Um maranhense e um capixaba. Os dois, Ferreira Gullar e Carlinhos Oliveira, chegaram ao Rio nos anos 50 e logo ficaram amigos (anos depois viriam a romper), dividindo um quarto no Catete e refeições dominicais num restaurante chinês na Lapa. Em A Estranha Vida Banal, Gullar – tão bom cronista quanto poeta – iria lembrar estes tempos heroicos na crônica “Frango tite”.
– Vou mercado, Plaça Quinze, tem num canto galinha tite, tite… Compro mais balato, né?”, contava o chinês, dono do restaurante. Triste porque doente. Ninguém comprava, exceto o chinês. Nunca mais eles jantaram lá.
- Carlinhos de Oliveira foi um autor que viveu (até mais do que escreveu) tudo aquilo que era publicado na coluna que durante 23 anos assinou no Caderno B do Jornal do Brasil, além das centenas de colaborações em jornais, revistas e nos sete livros que deixou. O viver em excesso – amores, dores, porres, perseguições, polêmicas, doenças, desilusões – cobrou cedo seu preço e Carlinhos morreu em 1986, com apenas 51 anos.
- Carlinhos Oliveira era um cronista que tinha ojeriza a rótulos e dogmas. Chegou a ser chamado de simpatizante da ditadura, embora nunca tivesse escrito uma linha a favor do governo militar e, na época braba da repressão, teve a coragem de abrigar em seu apartamento um militante de esquerda indiretamente envolvido no sequestro do embaixador Charles Elbrick. Apesar de beber muito – às vezes até de maneira inconveniente – Carlinhos Oliveira não se considerava um alcoólatra – pois o termo, segundo ele, estava associado ao desencanto e à depressão. Preferia definir-se como um bêbado que sabia tirar proveito das alegrias que a bebida proporciona. Era quase um clochard, pouco chegado ao banho e sem nenhum apego material. Nos últimos anos de vida voltou-se para a religião, mas permaneceu um iconoclasta que nem a fé conseguiu demover da incredulidade e, entre tantas definições, ninguém foi tão preciso quanto ele próprio ao se classificar como “surrealista por temperamento, anarquista por indisciplina de berço, boêmio por amor à vagabundagem e agregado à elite pensante por acaso”.
- No fim da vida, Carlinhos foi escritor residente e oficineiro na sua Vitória natal, no estado do Espírito Santo, e demonstrou interesse em ler algo que fizesse referência ao porto da cidade, com histórias sobre marinheiros, estivadores, prostitutas, malandros e tantos outros personagens que compõem a fauna de um cais. Porém, só encontrou textos com relatos sobre importação, exportação, gráficos e tabelas. Desconsolado, concluiu: “Este livro foi escrito por um guindaste!”.
Foto da Capa: Carlinhos Oliveira por Sebastião Barbosa/Arquivo