Grávida e sem ter uma casa para morar, Ana Paula passou os últimos dias de gestação entre a alegria pelo nascimento do quarto filho e a angústia de não saber se ficaria sem a criança antes mesmo de deixar a maternidade.
A mulher, que vive em Portugal há oito anos, já morou com a família em uma casa alugada, mas, com o aumento dos preços, teve que deixar o local e acabou se mudando para uma área irregular, onde várias pessoas na mesma situação construíram suas próprias moradias. Em setembro do ano passado, teve seu “barraco” demolido e foi viver com os filhos em um quarto de pensão indicado pela Segurança Social. Como se a situação degradante não bastasse, ainda se viu ameaçada de perder a guarda do filho caso não “encontrasse” uma casa antes de ir para a maternidade.
O desespero levou Ana Paula às redes sociais. Ela gravou um vídeo explicando a situação: “Onde querem que eu vá?”, perguntou, aos prantos. O apelo viralizou. Organizações de direitos humanos tomaram o caso como símbolo de um problema maior, e um abaixo-assinado começou a circular, exigindo soluções urgentes para a enorme crise habitacional que afeta Ana Paula e tantas outras pessoas que se veem obrigadas a viver em barracas, pensões ou quartos compartilhados.
Essa crise habitacional não aconteceu “do nada”. Foi construída por políticas públicas que ignoraram os riscos de transformar casas em mercadoria, aliadas a uma redução significativa dos investimentos no setor de habitação pública.
Criado em 2013, o “Golden Visa”, por exemplo, abriu as portas para milionários estrangeiros de diferentes partes do mundo, incluindo muitos brasileiros, comprarem propriedades e, automaticamente, obterem a residência europeia. A medida foi duramente criticada por diversos setores da sociedade, mas de nada adiantou.
A promessa do governo era atrair investimentos e promover o crescimento econômico. A realidade foi outra: os preços dispararam, os bairros tradicionais foram tomados por fundos imobiliários, e as casas deixaram de ser um lugar para morar – passaram a ser ativos financeiros, revendidos a preços estratosféricos, que não param de subir.
Para se ter uma ideia, o valor médio do metro quadrado, de acordo com o Instituto Nacional de Estatística, é de 1.662 euros para imóveis residenciais – um aumento de 9,3% em relação ao ano passado.
Outra medida controversa envolveu os nômades digitais, que voltaram os olhos para Portugal incentivados por benefícios fiscais atrativos e pela promessa de viverem em um paraíso barato e moderno. E eles compraram a ideia. Vieram aos milhares, com dinheiro no bolso e capacidade de alugar casas por valores impossíveis para os moradores locais.
Como se não bastasse, a especulação imobiliária encontrou ainda outro aliado: o “boom” dos aluguéis de curta duração para turistas. Apartamentos que antes serviam famílias inteiras passaram a ser listados no Airbnb por preços diários que um trabalhador médio não ganha em uma semana. Vale lembrar que o salário mínimo em Portugal, hoje, é de 870 euros brutos por mês.
O resultado da combinação “Golden Visa X nômades digitais X turismo” inflacionou o mercado de tal forma que frequentemente surgem notícias sobre casos em que mais de vinte pessoas dividem um mesmo apartamento, dormindo por turnos. É o aluguel de camas. A situação dramática afeta tanto os imigrantes quanto os próprios portugueses.
Quando não foi mais possível ignorar o problema, o governo tentou “arrumar a casa”, mas as soluções chegaram tarde e sem força suficiente para reverter a crise habitacional. Os preços continuam altos, a habitação pública segue escassa, e os apoios para os mais vulneráveis são insuficientes.
Ana Paula conseguiu uma trégua depois que milhares de pessoas assinaram uma petição pública para que ela permaneça com os quatro filhos na pensão paga pelo Estado. Porém, há milhares como ela.
O acesso à habitação é, talvez, um dos problemas sociais mais graves que o governo precisa resolver no momento. Nunca foi tão grande a diferença entre os rendimentos da população e os preços das casas. Essa, com certeza, não é uma questão que o mercado privado vai resolver.
E agora, Portugal?
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Foto da Capa: Lisboa para Pessoas