Dados, pesquisas e estatísticas para que você consiga compreender que trabalhar mais te mata, ao invés de te enriquecer. Adoro a frase: se não houver amor, então não se demore lá. Fala de escolher estar, da gente se ocupar ou ocupar espaços em lugares que nos fazem bem, que é para gente se manter ali, naquele lugar, desde que haja amor, fala do tempo.
Queria muito escrever sobre isso, sobre a demora e sobre ficar nos lugares em que haja amor, mas de que jeito que eu vou conseguir escrever sobre isso, quando me deparo com a seguinte afirmação: “Não há pobreza que resista a 14 horas de trabalho.” O moleque inconsequente gerou polêmica na semana passada a partir de um post em que ele fala sobre como ficar rico.
Eu sei que estou me repetindo e repetindo e repetindo assuntos por aqui.
Pode me perdoar?
Porém, discutir a branquitude e as falhas de caráter dessa branquitude é o que me resta, porque juro de dedinho que eu ia falar de amor. Eu ia.
Não deu.
Etimologicamente falando, resistir significa ficar firme, aguentar, permanecer firme, resistir de pé, o que me remete ao fato de que não se escolhe, porque o que se faz é uma oposição há uma ação contrária. Ou seja, aqui temos a compreensão de que não haverá pobreza para quem AGUENTAR 14 horas de trabalho.
Cá estamos falando de uma frase proferida por uma figura masculina e branca, (aquele lá das 14 horas de trabalho), que não possui qualquer compromisso com a vida, pois pelas redes sociais prolifera um conteúdo midiático de qualidade duvidosa, sugerindo que a riqueza e a abundância estão na sua demora. Isso mesmo, na sua demora em existência e não resistida no trabalho.
O problema do branco que proferiu a frase indicada é a amnésia, etimologicamente do grego e que tem como significado o esquecimento (além da óbvia falta de vergonha na cara). E não estou trazendo o esquecimento sobre a nossa longa história escravocrata e escravizadora, na qual seres humanos aguentavam 18 horas por dia de trabalho.
Vamos aos dados e aos fatos, porque, como já dizia Hannah Arendt: “Tanto a liberdade quanto a sobrevivência podem muito bem depender do nosso sucesso ou fracasso em persuadir a outra parte do mundo a reconhecer os fatos como eles são e a aceitar a realidade do mundo tal como ela é”.
Segundo o Ministério do Trabalho e Emprego, o trabalho escravo contemporâneo, portanto, atual e moderno, pode ser identificado: “Na legislação brasileira, o artigo 149 do Código Penal prevê os elementos que caracterizam a redução de um ser humano à condição análoga à de escravo. São eles: a submissão a trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, (…). O conceito de trabalho escravo contemporâneo trazido pelo ordenamento brasileiro representa grande avanço no combate à essa dura realidade, pois evidencia que, nos tempos atuais, sua configuração vai muito além da privação de liberdade, ocorrendo nas mais amplas situações de ofensa à dignidade do ser humano, como em hipóteses de submissão a condições degradantes de trabalho, jornadas exaustivas(…)”
Os direitos trabalhistas surgiram pela urgente necessidade de delimitação de uma jornada de trabalho: “As primeiras leis trabalhistas, na Europa, foram motivadas pela necessidade de coibir os abusos perpetrados contra o proletariado e, mais diretamente, a exploração do trabalho dos menores e das mulheres”. Ou seja, os seres humanos morriam, lá em mil anos e guaraná de rolha, por conta da sua demora no trabalho, caro leitor.
Morriam ontem e hoje, porque estudos científicos atuais apontam que a exaustão, atrelada a uma jornada de trabalho superior a 13 horas, mata: “Funcionários sedentários por mais de 13 horas por dia tiveram duas vezes mais chances de morrer prematuramente do que aqueles que ficaram inativos por 11,5 horas. Os autores concluíram que ficar sentado em um escritório por longos períodos tem um efeito semelhante ao fumo e deveria vir com um aviso de saúde.”
Nos meus tempos estudantis e de fã do Direito Penal, até onde eu me recordo, incitar os viventes a praticar suicídio é crime e, desde já, inclusive, aproveito para indicar o link em que você pode denunciar trabalhos análogos ao escravo: clique aqui.
Vamos às mulheres?
Trago para este texto a doutora Cida Bento: “Segundo dados da Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade) e do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese), a população negra trabalha duas horas a mais do que a branca, em qualquer parte do Brasil. Mais recentemente, em novembro de 2019, outra análise do Dieese indicou que a população negra trabalha mais e ganha menos em todos os estados do Brasil – a média é de 30% menos em comparação com os não negros, sendo as mulheres negras o grupo mais afetado, visto que trabalham quase o dobro do tempo para obter o salário de um homem branco.”
Nesse sentido, a Gênero e Número, uma associação que produz e distribui jornalismo e informação orientados por dados e análises sobre questões urgentes de gênero e raça, publicou pesquisa que trouxe uma realidade em completa dissonância com as sugestões do menino moleque, porque, convenhamos, frase de moleque. Em trabalho desenvolvido em parceria com a SOF – Sempreviva Organização Feminista, a associação aponta que na pandemia “50% das mulheres passaram a apoiar ou se responsabilizar pelo cuidado de outra pessoa. Entre essas mulheres, 80,6% passaram a cuidar de familiares, 24% de amigos/as e 11% de vizinhos. (…) A atenção, disponibilidade de tempo e presença são componentes do cuidado assumidos pelas mulheres na pandemia, que também iluminam essas dimensões das necessidades humanas satisfeitas pelo cuidado. Ligar e monitorar foram atividades indicadas por 63% das entrevistadas. Ir ao supermercado ou à farmácia correspondeu a 56,6% dos cuidados assumidos, e fazer companhia 26%”.
Ou seja, hoje, pós pandemia, estaríamos ricas, todas nós, não é mesmo, caro moleque desmemoriado. Ou mortas?