Humanidade? O que é isso?
A notícia sobre a censura do livro “O Avesso da Pele”, de Jeferson Tenório (Companhia das Letras, 2020), em uma escola de Santa Cruz do Sul/RS me espantou muito. Pois é, eu ainda me espanto barbaramente com o preconceito e desta vez sobraram motivos! A diretora chegou a fazer um vídeo em que acusa o escritor de usar palavras de “baixo calão”, além de dizer que a publicação contém cenas de atos sexuais. Após a repercussão e a moção de um vereador, a 6ª CRE/Coordenadoria Regional de Educação mandou recolher os exemplares das escolas e bibliotecas até que o governo federal se manifeste. Não entendi a convocação, mas vi que tanto o governo federal como o estadual já se manifestaram em apoio ao autor que afirmou: “Não vamos aceitar qualquer tipo de censura ou movimentos autoritários que prejudiquem estudantes de ler e refletir sobre a sociedade em que vivemos”. Portanto, vamos adiante.
Professor e escritor, Jeferson Tenório foi patrono da Feira do Livro de Porto Alegre em 2020.
Não há como negar – o preconceito está mais do que explícito nesta tentativa de cancelamento! “O Avesso da Pele” já foi adotado em centenas de escolas Brasil afora, conquistou o Prêmio Jabuti, foi finalista de outros prêmios, teve direitos de publicação vendidos para mais de 10 países, foi adaptado para o teatro, foi avaliado pelo PNLD/Programa Nacional do Livro e do Material Didático em 2021 e a própria diretora assinou a ata de escolha. Escolheu sem saber o que estava fazendo? Muito estranho! Mas o que realmente me espanta nesta manifestação discriminatória é que as palavras chamadas de “baixo calão” e a referência aos atos sexuais contidos no livro causam mais incômodo para a diretora do que o racismo, a violência policial, o assassinato e a perseguição diária sofrida pelas pessoas negras. Que incapacidade absurda de olhar para além da sua bolha!
O livro é contundente, corajoso e necessário!
Li “O Avesso da Pele” duas vezes. A primeira em janeiro de 2021, em plena pandemia do coronavírus, e fiquei muito mexida com a história. Pedro, o narrador, resolve refazer a trajetória dos pais, especialmente do pai – “um homem inteligente e sensível, inquieto, abalado pelas fraturas existenciais da sua condição de negro em um país racista” – para entender um pouco mais a trajetória da família e a sua. A segunda leitura foi em janeiro de 2022 – “Você sempre dizia que os negros tinham de lutar, pois o mundo branco havia nos tirado quase tudo e que pensar era o que nos restava. É necessário preservar o avesso, você me disse”. O livro é contundente, corajoso e necessário. Nas suas páginas encontramos um Brasil racista, marcado por uma educação ancorada na supremacia branca, que vira as costas para o sofrimento de pessoas negras. Um Brasil que ainda não olhou com atenção e urgência para questões fundamentais da nossa história, como a barbárie da escravidão. Até porque o preconceito não dá trégua.
Que leitura esta professora fez do livro?
Em momentos como este é saudável lembrar que tijolo por tijolo desta construção que chamamos Brasil é resultado do trabalho de milhares de negros que foram trazidos da África para servir aos brancos invasores que reinavam na casa grande. Precisamos refletir para entender o que leva uma professora a negar a história que a literatura nos traz em forma de romance. A arte abre janelas para a diversidade e para a nossa libertação precisamos atravessá-las. Caso contrário, viveremos mediocremente, com olhos encarcerados no preconceito, proibindo que as escolas sejam fonte de aprendizados, esclarecimento e afirmação da nossa liberdade de escolha.