1 – Em 2009, Caetano Veloso lançou no seu então mais recente disco, Zii e Zie, uma canção esquisita chamada A Base de Guantánamo, inspirada por uma série de denúncias que haviam vindo a público sobre torturas e maus tratos a prisioneiros afegãos confinados na, bem, na Base de Guantánamo, óbvio. Em termos estruturais, a música consistia em um verso, também título da canção, repetido e recombinado exaustivamente com uma voz monótona, quase robótica, sobre uma percussão compassada marcada também por palhetadas de uma guitarra aguda e desconfortável. Mas havia mais uma coisa. Do meu “ponto de audição”, digamos assim, essa interpretação impassível transformava a música inteira numa espécie de ruído branco para salientar o contraste dos versos que formavam o coração da canção: “O fato de os americanos / Desrespeitarem / Os direitos humanos / Em solo cubano/ É por demais forte simbolicamente / para eu não me abalar“. Essa parte era cantada por Caetano em um momento em que a música inteira desacelerava, sublinhando que esse quase “mantra” repetido quatro vezes na canção (uma delas logo no início) é o centro, o “Koan”, o verdadeiro coração dessa música, fruto desse abalo que, a letra deixa claro, não é tanto pelo fato e sim pelo seu potencial simbólico.
2 – Símbolos estão na base do que torna os humanos diversos dos demais animais que habitam a Terra. Não é a comunicação, uma vez que várias espécies no planeta compartilham sistemas de comunicação, alguns bastante complexos, apenas não verbais. Também não é bem o entendimento da linguagem, uma vez que outros mamíferos são capazes disso em níveis que vão do complexo ao exemplo nível mais básico: o seu cachorro entende que é a hora de passear quando vê você pegar a coleira. Uma das coisas que tornam a sociedade humana complexa como é está na forma como o ser humano simboliza. Não à toa, várias correntes e sistemas de pensamento se dedicam a analisar o símbolo e o processo simbólico como parte fundamental da experiência humana comum.
3 – Para Carl G. Jung e seu viés psicanalítico da questão, “um estudo do homem e de seus símbolos é, efetivamente, um estudo da relação do homem com seu inconsciente“, como resume John Freeman em sua introdução para O Homem e Seus Símbolos. Jung analisava não só o mecanismo de criação de símbolos, mas como esse processo se refletia na forma como, na teoria psicanalítica, o inconsciente se comunica pelos sonhos. A fenomenologia de Husserl, para quem as questões de representações eram importantes, analisa o papel da experiência subjetiva na construção de significado. Ele afirma que “as apreensões de imagem e as apreensões simbólicas têm em comum o fato de que não são simples apreensões. Em certo sentido, ambas apontam para além de si mesmas. Mas a apreensão simbólica e, além disso, a apreensão significa apontar para além de um objeto estranho ao que aparece internamente“. Parte do trabalho de Jean Piaget se debruça sobre o momento em que a criança começa não apenas a entender a criação de símbolos, mas em que passa também a produzi-los. A Hermenêutica de Hans-George Gadamer tem como foco de análise a interpretação que se faz de símbolos e textos.
4 – O mesmo Gadamer, aliás, relata a origem etimológica do termo “símbolo” em seu ensaio A atualidade do belo: “O que significa símbolo? É antes de tudo uma palavra técnica da língua grega e significa pedaços de recordação. Um anfitrião dá a seu hóspede a chamada ‘téssera hospitalis’, ou seja, ele quebra um caco no meio, conserva uma metade e dá a outra ao hóspede, a fim de que, quando daí a trinta ou cinquenta anos, um sucessor desse hóspede vier de novo a sua casa, um reconheça o outro pelo coincidir dos pedaços em um todo. Um antigo passaporte: este é o sentido originário de símbolo. É algo com que se reconhece em alguém um antigo conhecido”. Embora Gadamer fale em um “caco”, os “símbolos” encontrados como achados arqueológicos variam bastante de forma e natureza. Poderiam ser “dados” cúbicos de vários materiais (aliás, é daí que vem a palavra latina “téssera” que ele cita), moedas de bronze, pedaços de ossos. Na origem, “símbolo” advém do grego sýmbolon (σύμβολον), por sua vez originado no termo symbállein (συμβάλλειν), que significa literalmente “agregar”, “juntar” ou “formar um conjunto”. Não à toa, é essa a palavra que aparece n’O Banquete, de Platão, quando Aristófanes passa a relatar uma das ideias mais famosas expressas nesse texto clássico, a dos humanos como os resquícios mutilados de criaturas antigas esféricas que foram cortadas ao meio por desagradarem a Zeus. Como O Banquete é um discurso sobre o Amor, nasce daí a ideia romântica persistente até hoje sobre a busca pela “outra metade”, cujo encontro nos tornará inteiros novamente: “Cada um de nós, portanto, é uma téssera complementar (σύμβολον) de um homem, porque cortado como os linguados, de um só em dois” (tradução de J. Cavalcante de Souza).
5 – O símbolo é uma espécie de mensagem que só pode ser compreendida em seu caráter duplo, um signo que carrega um significado parcial que só fará pleno sentido junto à sua outra metade. Assim, um símbolo é um signo que precisa de um significante que não está ali, mas em outra parte, e é necessário para que a mensagem seja decodificada. Não é uma simples figura de retórica usar esse ‘decodificado’ que não por acaso remete à criptografia: romanos usavam “tésseras” também como senhas para identificação dos seus pelotões e para impedir que suas fileiras fossem infiltradas por inimigos. Um procedimento, aliás, já presente no sýnthima (σύνθημα) dos gregos, um pedaço de madeira no qual se gravava uma senha. Essa senha era passada de escalão em escalão da hierarquia de um dia para o outro – e esse tipo de procedimento ainda é usado em quartéis militares e exércitos modernos de todo o mundo, inclusive aqui no Brasil.
6 – Temos falado aqui indiscriminadamente de “signo” e “símbolo”, e não é de hoje certa confusão geral sobre o que sejam os dois conceitos. Ao ponto de essa discriminação ser um debate central sustentado pela semiótica, a ciência dos signos e símbolos propriamente ditos, campo relativamente recente, mas cujas discussões remetem a questões bastante antigas. Dependendo de qual corrente da semiótica você está investigando, símbolos e signos não podem ser sinônimos, já que um é, digamos, o grau de escala e expansão do outro, resumindo a coisa em pinceladas bem toscas.
7 – Uma das coisas mais tristes ocorridas na cultura de modo geral com a ascensão da tosca ideologia retrógrada da extrema direita contemporânea é a perversão para uso político do termo “narrativa”, muito ouvido na boca dos reaças de zap e até mesmo na de políticos profissionais vinculados ao bolsonarismo. Faz algum sentido que esse tipo de visão de mundo condene a noção de “narrativa” – enquanto faz uso dela, claro, já que a ideologia nunca foi necessariamente excludente da hipocrisia. A ideia de que há menos “fatos” do que “interpretações” no mundo fragiliza a visão ultraconservadora da nova extrema direita, uma vez que faz parte da “sua” narrativa a alegação de que determinadas coisas são como são. Claro, quando é do seu interesse, a extrema direita também sabe jogar com a percepção paranoica de que os “fatos estabelecidos” podem ser um consenso conspiratório formulado para impedir o “pensamento livre” (vimos bastante isso na pandemia, por exemplo, e na cruzada antiacadêmica que é uma das características desse campo ideológico). Portanto, também na esfera da política, o “simbolismo” é inescapável. Boa parte da extrema direita contemporânea tem tido sucesso ao “encriptar” suas mensagens num “símbolo” conveniente com o qual tanto o emissor de uma mensagem quanto parte de sua audiência conseguem reconhecer suas antigas alianças – não mais hospitalares, mas ideológicas. Não vejo outro motivo para que o atual novo/velho prefeito de Porto Alegre, o já mencionado neste espaço Cara Melo (leia aqui), tenha decidido se pronunciar, em seu primeiro discurso no novo mandato que vocês aí concederam, sinalizando que é liberdade de expressão defender a instauração de uma ditadura.
8 – Não é uma declaração impensada, o prefeito não é um amador nem um ingênuo, e o discurso foi claramente elaborado para ter o impacto e a ressonância que teve. Num início de ano fraco de notícias e com pouca coisa acontecendo no mundo da política, o atual prefeito de Porto Alegre envia essa declaração como uma téssera passando de mão em mão, do tribuno para o tesserário para o centurião até todos na Legião estarem cientes da senha transmitida. No caso, não um libelo intransigente em favor da liberdade de expressão, como o signo superficial poderia dar a entender – não vou fazer aqui o inventário completo, mas é difícil afirmar que Melo de fato defende a liberdade de expressão irrestrita de quem pede um golpe militar sem lembrar que esse é o mesmo político que pediu na Justiça a retirada de um grafite de rua, mostrando-o coberto pela lama da enchente. E isso para não falar de outros processos que o prefeito já impetrou contra críticos e adversários políticos, todos bem documentados na imprensa, é só dar um Google.
9 – Me parece que a mensagem codificada nessa declaração é mais simples e direta se analisada com os ouvidos dos interlocutores pretendidos: Melo reafirma sua vinculação ao bolsonarismo e aos eleitores de um Bolsonaro por enquanto fora do jogo eleitoral, mirando talvez rumos mais altos e cargos mais abrangentes. E sabe o que mais? Do ponto de vista pragmático, faz sentido. Viram a reportagem recente sobre como o Rio Grande do Sul foi o estado com o maior número de novas armas de fogo registradas no último ano, ultrapassando a soma de Minas Gerais e São Paulo, respectivamente segundo e terceiro lugares? É apenas um entre muitos indícios que nos comprovam que o Rio Grande do Sul no início dos anos 2000 cedeu lugar a este estado plenamente alinhado com o ultraconservadorismo contemporâneo e seus valores. Se você já é um político meio à direita mesmo, bom, eis um campo eleitoral a ser explorado.
10 – Mas sabe o que é legal no jogo simbólico? Mais de um pode jogar. A declaração polêmica de Melo parece ter, mesmo inadvertidamente, chocado tanto que subverteu o que deveria ser a verdadeira questão “por demais forte simbolicamente neste início de ano”. No ano passado, o prefeito e seu staff direto, entre eles alguns dos diretores do DMAE escolhidos para darem informações à população em um momento crucial, demonstraram uma incapacidade gigantesca na gestão da Capital em situação de calamidade. Não apenas na devastadora enchente de maio, mas antes ainda, no temporal que resultou em morte e estragos em janeiro. O prefeito pedia motosserras no Twitter. O gestor eleito para a administração da cidade pedia motosserras no Twitter e não conseguia encontrar ninguém da Equatorial. Depois, gravou um vídeo avisando que dois dos bairros mais populosos da região central iam ficar alagados no intervalo de duas horas. Se virem aí e corram, patuleia. Declarou que muitas pessoas que perderam tudo na enchente não deveriam estar morando ali onde estavam (e nessa ocasião, não vi o jornalismo hegemônico fazer a pergunta mais simples possível: essas moradias que “não deveriam estar ali” pagavam IPTU? Se sim, acho que isso meio que encerra qualquer questão sobre se a prefeitura acha que alguém deveria ou não estar em qualquer lugar. E o prefeito também declarou faz bem pouco que “vai continuar alagando” – aparentemente, limpar bueiros é um trabalho meio difícil de ser feito ao longo de sete meses, mas que sei eu disso? E sabe o que aconteceu no dia da posse do prefeito? Uma chuva que em nada se comparava ao Dilúvio de maio ou à tempestade iracunda de janeiro alagou novamente pontos da cidade, interrompeu o fornecimento de luz e levou ao cancelamento da cerimônia de posse de secretários municipais no Gasômetro. A chuva alagou a posse do prefeito, que estava no cargo durante a maior enchente da história da Capital. Não caia na armadilha da declaração provocativa do perfeito, urdida e tecida para provocar o efeito que teve. Pense em quanto é “por demais forte simbolicamente” esse fato, no qual situações não planejadas providenciam um quadro significativo de acepções perturbadoras. Não sei como será o novo mandato do prefeito, mas seu início já tem seu símbolo assegurado. Sugiro que nos concentremos nele.
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Foto da Capa: Reprodução Globoplay / RBS TV