Quando os helicópteros cessarem, as ambulâncias descansarem, os abrigos se tornarem mais uma vez lugares economicamente rentáveis e destinados aos seus primordiais propósitos – mesmo que não se saiba exatamente para onde os verdadeiros desabrigados irão – será preciso narrar. Quando a comoção passar, quando o choque se esvanecer e formos convocados às nossas banais rotinas retornar, será preciso narrar. Quando algo grande acontece, maior do que nossa imaginação uma vez pôde conceber, é preciso narrar.
Eu sou uma defensora e uma amante das palavras transmitidas. Podem ser vocalizadas, contadas, mas precisam muito ser escritas. Porque são testemunhos, legados, heranças. Livros, receitas, tradições, mistérios, dores. Tudo precisa ser passado adiante para que ganhe sentido e significado e, dependendo do tipo de evento, não seja repetido.
Uma estudante, na retomada das aulas da universidade (sou professora da graduação de Psicologia) confidenciou à turma, frustrada, que sente ser preciso abandonar seu tema de pesquisa do trabalho de conclusão de curso, que era justamente o tema da Psicologia em situações de emergências e catástrofes, porque se sentiria – usando palavras mais aceitáveis e publicáveis aqui – uma grande sacana em falar ou teorizar sobre esse tema justamente agora, em meio a tudo que estamos vivendo em nosso Estado. Ironicamente, esse tema já tinha sido escolhido por ela bem antes de todos estes eventos, mas ainda assim ela não se sentia autorizada a aprofundar esse tema agora. Conversamos sobre isso e coloquei a ela e aos demais colegas que esse sentimento me parecia legítimo e que qualquer tentativa, nesse momento, de teorizar sobre a catástrofe, parece vão e leviano.
Mas não é. Conversamos sobre isso, sobre o conceito de a posteriori em Psicanálise, de que a percepção de um acontecimento, de um trauma, sempre vem depois. E que depois será necessário, e muito, a elaboração de muitos trabalhos, textos, pesquisas, relatos e testemunhos sobre o assunto. A elaboração só é possível dando contorno aos acontecimentos, mas não sem antes tomar um certo distanciamento deles, um olhar afastado e menos afetado sobre a questão.
Essa conversa com a estudante e com a turma me remeteu diretamente a um texto que gosto muito e que ao meu ver tem muita relação com isso. “O narrador” de Walter Benjamin, é um ensaio escrito em 1936, mas que me parece sempre atual. Nele, o autor elenca uma série de argumentos sobre a impossibilidade da noção tradicional de transmissão da experiência na modernidade. As primeiras aulas que venho tendo com os estudantes pós paralisação em função das enchentes trazem essa reflexão Benjaminiana na prática. Muitos relatam ainda estarem com a cabeça cheia, que voltam para casa, como os combatentes de guerra do ensaio citado, sem condições de contar nada do que viram nos cenários de resgate ou de abrigos aos que perderam tudo. Agora, semanas após os eventos, mas ainda em uma situação de durante, muitos ainda trazem dificuldade de concentração, de voltar a uma rotina.
Benjamin escreve que as experiências estão deixando de ser comunicáveis e assim não podemos dar conselhos nem a nós mesmos e nem aos outros. Apesar da palavra poder ser lida com cara torta, especialmente por quem é da minha área, o autor esclarece que aconselhar é menos responder a uma pergunta e mais oferecer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada. Para isso, é necessário primeiro saber narrar a história. O trauma amputa (com sorte, temporariamente) a capacidade narrativa. É preciso dar prótese a essa extirpação da capacidade simbólica. Assisti a participação do psicanalista Jorge Forbes na CNN sobre a tragédia do Rio Grande do Sul e ele fez uma analogia pertinente do lidar com toda essa situação e a cicatriz de um ferimento. Se bem cuidado, se a ferida é limpa, mexida, costurada (tantas narrações são comparadas a costurar histórias) a cicatriz vai curando bem, sumindo. A marca fica, obviamente, mas mais como herança ressignificada. Se esse processo não ocorre, forma-se o queloide. O queloide é uma deformação da cicatriz: ali onde antes havia ferimento, agora deixa algo de desconfortável e até feio que permanece, dando visibilidade e lembrança constante a um evento que se deseja deixar como algo acontecido, não esquecido, mas apaziguado.
Vivemos tempos da excessiva espetacularização da vida e de pouca elaboração e enlutamento sobre ela. Benjamin segue no ensaio trazendo uma ideia sobre a qual tenho muito apreço: o mundo traz muita informação e pouca narrativa. A narrativa é uma informação carregada de ponderação, de afetos bons e maus, de algo que comunica da nossa humanidade. Que possamos, com o devido tempo, narrar nossas histórias, das mais grandiosas e traumáticas às mais singelas e mundanas. Por nós, pelas gerações vindouras. Que nada seja esquecido, mas que nada permaneça como um queloide incômodo. Melhor dito, queloides temos todos, alguns até atrapalham para sentar numa poltrona ou deitar no divã de um psicanalista. Mas bem antes disso, há algo de terapêutico no narrar, no transmitir ao outro sobre nossas dores, que vem sendo gradativamente perdido.
Resgatemos nossos feridos, nossas feridas. Contemos ao mundo nossas histórias. Há muito o que contar. Há muitos com quem contar.
Foto da Capa: Copilot IA
Mais textos de Luciane Slomka: Leia Aqui.