Nos anos 1990, a cantora Joan Osborne despontou para o sucesso com seu single de estreia, uma música composta por Eric Bazilian, dos Hooters, intitulada One of Us, cujo célebre refrão dizia: What if God was one of us? / Just a slob like one of us / Just a stranger on the bus / Tryin’ to make his way home? (em uma tradução aproximada: “E Se Deus fosse um de nós? / Apenas um abobado como um de nós / Apenas um estranho no ônibus / Tentando voltar para casa?”). Em outros versos, a mesma canção imaginava que efeito teria no mundo de qualquer pessoa (qualquer pessoa crente, imagino) se a concepção de Deus se revelasse equivocada e, em vez da figura hierática solene e distante com que ele foi pintado ao longo de séculos, fosse alguém surpreendentemente normal, com um rosto, um nome, alguém a quem se pudesse fazer uma pergunta. Uma perspectiva interessante mas que não se conecta comigo.
A estrofe dessa canção que realmente me deixava pensando era um lá no meio em que a letra declarava: “If God had a face what would it look like? / And would you want to see / If seeing meant that you would have to believe / In things like heaven and in Jesus and the Saints”. (de novo numa tradução livre: “Se Deus tivesse um rosto, como ele seria? / E você gostaria de ver / Se ver significasse que teria que acreditar / Em coisas como o céu e em Jesus e nos santos?”). Para mim, esses versos resumem minhas próprias dúvidas eventuais sobre a metafísica: não sabendo se Deus existe, não me preocupo com ele. Mas eventualmente me preocupo que, na hipótese de ele existir, ele seja como algumas figuras defendem que ele é.
Metafísica
Aqui preciso deixar algumas coisas mais claras. De modo geral, minha declaração automática quando alguém me pergunta (e infelizmente mais gente do que deveria já me perguntou) sobre minha afiliação religiosa é me declarar ateu. É uma declaração que considero política mais do que cem por cento correta. Para começo de conversa, tecnicamente, eu sei que Deus existe – existe da mesma forma que o Homem-Aranha, Dom Quixote, Hans Castorp e o Pato Donald: existe como uma criação literária, um personagem em um obra lida por milhões. Como explica Jack Miles em sua obra Deus, uma Biografia, de 1995: “O conhecimento de Deus como personagem literário não impede nem exige a crença em Deus”. Logo, sim, Deus existe como esse personagem de um livro particularmente bem-sucedido em termos de venda e de permanência, seria fútil negar.
A questão sobre se “Deus Existe”, contudo, não está posta nesses termos, ela sempre se refere não a Deus como o personagem de uma história, mas como um personagem da realidade metafísica. Deus como uma força criadora do universo, como uma luz brilhante, uma sarça ardente, uma voz no deserto, um ancião de barbas brancas numa nuvem ou até mesmo, como anda em moda no misticismo namastê contemporâneo, como uma mulher sábia em algum plano metafísico ancestral. E se eu tivesse que responder o que realmente acho, eu diria que não sei. Não é possível provar a existência de Deus. Ou mesmo se ele é um só, ou se é um que também é três (qualquer cristão hardcore que fale mal de quadrinhos de super-herói é meio que um hipócrita considerando o quanto partes de sua doutrina parecem saídas de um gibi da Marvel) ou se ele não é um só, mas vários deuses, cada um responsável por um aspecto diverso da vida natural e da experiência humana, como o eram para os gregos, para os escandinavos, mesmo para a cosmogonia africana do candomblé. Não é possível provar porque isso não é da ordem do físico, e qualquer experiência mística não é repetível com os mesmos resultados, logo, assim como não se pode provar sua existência, também não é possível provar sua não existência, e todas as conversas sobre o assunto sempre parecem se resumir a esse ponto: sem evidências científicas verificáveis, a existência dessa figura mística é uma matéria de fé. Vale para você o que você acha, de acordo com o que você sente que é verdade. E se vocês me perguntassem o que eu sinto nesse caso, eu me inclinaria mais a reconhecer que a não existência de um ser divino neste universo caótico de matéria fervilhante e acaso me parece uma verdade mais possível do que a ideia de que uma vontade consciente, seja que forma tiver, está por trás do circo todo.
A política do ateísmo
Logo, o ateísmo não deixa de ser ele próprio também matéria de fé, contraditoriamente. E o lógico seria assumir, com honestidade, o limite desse tipo de conhecimento e reconhecer que todos deveríamos ser agnósticos, não sabemos, não sabemos se um dia saberemos (“sobre o que não podemos falar, devemos calar”, já dizia Wittgenstein). Mas quando me perguntam, faço questão de dizer que sou ateu – porque, como comentei, ser ateu não deixa de ser também um ato de fé, e se há uma fé no planeta alvo de constante e injustificável preconceito é o ateísmo.
Uma falácia metafísica espalhada por crentes de várias religiões (e que, saibam eles ou não, deve muito à concepção metafísica de Hegel) segundo a qual, sem a ideia de Deus como um “bem fundamental” para servir de metro “moral”, não há verdadeira ética possível numa visão de mundo não religiosa – e, assim, ateus seriam personagem sem um real sistema de valores, uma vez que cada indivíduo teria o seu (o popular “Se Deus não existe, tudo é permitido” que o cristãozíssimo Dostoiévski escreveu em um trecho de Os Irmãos Karamázov).
Ateus são uma minoria mesmo dentro de um grupo censitário mais amplo que se declaram “sem religião” (identificação que, pelos dados do Censo mais recente, esse mesmo que está tomando pedrada de todo lado, cresceu especialmente entre os jovens). Ateus são vistos com desconfiança quando postulam cargos públicos. Ateus são anatematizados em qualquer vertente religiosa. Mesmo o estado sendo teoricamente laico declarar-se “ateu” é incrivelmente prejudicial, ainda mais depois do fervor místico demonstrado nos últimos quatro anos pelos apoiadores do ex-presidente para quem, não importando a suposta laicidade, “deus” estava acima de tudo. Daí porque, toda vez que alguém decide que deve me perguntar algo assim, me parece mais apropriado lançar a provocação política do ateísmo do que o agnosticismo que deveria ser o mais lógico em qualquer resposta.
Não digo que não haja uma crítica válida no fato de que a ética de cada indivíduo, sem um fundamento coercitivo comum, pode tender ao individualismo, mas me parece que ter uma religião cristã fundamentada na moderna “teologia da prosperidade” das igrejas evangélicas é tão danoso quanto o cada um por si que muitos acreditam ser o centro da moral ateísta, anulando boa parte dessa crítica. O que eu particularmente vejo como falácia nesse pensamento é justamente a ideia de absoluto por trás do conceito de uma ética religiosa – mesmo religiosos defendem a pena de morte de acordo com suas conveniências, mostrando que a tônica das interações sociais humanas é mais a mutabilidade do que o absoluto, e ter no século XXI ainda as mesmas prescrições absolutas de uma tribo hebreia no deserto há cinco mil anos me parece indefensável. Mas eu não sou teólogo, sou crítico literário – a diferença entre os dois é que o crítico literário não acha que o personagem de um livro existe no mundo “real”.
Fé e razão
Mas claro, uma das coisas que distingue a fé cega da razão é a possibilidade de aceitar a dúvida. Eu não acho que o proselitismo ateu seja particularmente efetivo porque proselitismo de modo geral é um saco. E o que eu vejo como um mérito nesse “cada um por si” que os religiosos consideram a inescapável conclusão do pensamento ateísta é que assim não se impõe nada a ninguém.
E aqui chegamos a um ponto que as religiões organizadas nunca sabem responder de modo apropriado: por que a religião não pode ser uma questão individual sem interferência? Porque de modo geral as vertentes do cristianismo são “expansionistas” por natureza, não basta que você acredite, faz parte de sua missão divina me fazer acreditar também ou me eliminar do convívio dos demais para que minha “dúvida” e minha “descrença” não contaminem os demais. O que é muito engraçado considerando o quanto vimos lideranças religiosas bolsonaristas jogando contra os protocolos de contaminação na recente pandemia. É interessante contemplar uma visão de mundo que trata a descrença como pandemia e a pandemia como matéria de fé.
Sendo a dúvida parte do conjunto básico das ferramentas intelectuais, eu próprio muitas vezes volto ao ponto central, a impossibilidade de saber com certeza, para pensar e cogitar sobre o quanto, não havendo uma resposta possível, a resposta dos crentes não pode de algum modo estar certa.
Não havendo como saber se Deus existe ou se importa, o verdadeiro pesadelo lógico é imaginar um mundo em que os fundamentalistas estejam de fato com a razão. Já é difícil uma vida exposto a determinado tipo de crença irracional. Um pós-vida em que essa crença seja legitimada seria, muito apropriadamente, aliás, um inferno para aqueles como eu.
Religiões
Não tenho religião, mas como fenômeno social sempre achei que a religião organizada, assim como outras agremiações humanas de caráter espontâneo, tem sua cota de benefícios e de complicações. A cota de benefícios estaria em um propósito que eu não sei se é das Igrejas ou se é algo que eu atribuí a elas em minha esperança pessoal: o potencial de tornar cada um uma versão melhor de si mesmo. Os contras estão à vista de todos: sectarismo, ilusão de superioridade moral por adesão a preceitos de grupo, intolerância contra os que não seguem o dogma (muitas vezes oriunda de uma inconfessável e profunda insegurança sobre a validade desse dogma, uma vez que o poder de “uma verdade revelada” não deveria ser nunca abalado por qualquer “visão dissidente nascida do erro” Quando, prática, a visão herege — termo, que significativamente, significa escolha — é sempre vista como um risco real à propagação da verdade).
Para encaixar Deus na sua narrativa, a Igreja cristã precisa lidar com muitos paradoxos que de um ponto de vista puramente narrativo não fecham de modo nenhum – e que fariam qualquer youtuber de cinema meia-boca gritar “furo de roteiro” se aplicado a uma história ficcional contemporânea. Deus é eterno. Curiosamente, o cristianismo insere na narrativa a ideia de que Deus é também outras pessoas, Jesus e o Espírito Santo. Tiremos do caminho o fato de que a versão que prevaleceu ao longo do entendimento histórico foi aquela que amealhou poder político na Igreja para destroçar a outra, mas tomemos isso como verdade a bem do debate: isso significa que Deus deveria ter sido três desde o início dos tempos, algo que o Novo Testamento apropriado do Judaísmo não menciona em momento algum.
A Bíblia também menciona, em Hebreus, que “Jesus, ontem e hoje é o mesmo, e o será para sempre”. Esse único verso em toda a Bíblia sustenta a ideia cristã de que Deus, além de eterno, é imutável, quando a própria leitura da Bíblia joga contra essa interpretação uma vez que o Deus irascível e até mesmo vingativo incorporado da Bíblia Hebraica não combina em nada com sua versão no Novo Testamento (a não ser, claro, em sua olímpica indiferença aos apelos de seu filho para que “afaste de mim esse cálice”). Como diz Jack Miles em seu livro, embora Deus seja eterno: “não existe no Novo Testamento nenhuma garantia à afirmação de que Deus é imutável, como também não há na Bíblia hebraica. A origem dessa concepção encontra-se provavelmente, na filosofia aristotélica, com sua formulação de Deus como o motos imóvel, existindo num momento único, eterno”.
Um deles
Assim, ao analisar tantas contradições e dissonâncias, para qualquer um que duvide da existência de Deus, fica mais ou menos fácil ter em mente que, com tantas intervenções da mão humana numa narrativa que se pretende divina, é muito provável que essa narrativa seja ficcional ou, se tiver validade metafísica, talvez tenha mais valor alegórico como uma tentativa de plasmar em palavras um entendimento místico que chega fragmentado e incompreensível ao limitado cérebro humano.
Mas ainda assim, de tempos em tempos, me assalta a pergunta. E se, mesmo assim, num hipotético e pouco provável além vida, eu vier a descobrir que as crenças confusas e muitas vezes sectárias desse pessoal é que estavam certas e eu, em meu humanismo bem-intencionado, é que estava errado? E se Deus for como um de seus pregadores hidrófobos, por exemplo? E se, apesar de seus protestos como uma figura “de puro amor”, Deus odeia quem discorda? E se, apesar de sua mensagem de compaixão, qualquer pessoa que fuja das normas religiosas seja uma abominação pecadora de fato? E se a felicidade humana que nasce da simples e nem sempre garantida circunstância de ser-se quem se é sem ser perseguido por isso de fato contraria o “divino plano”?
E se aquele pastor político muito famoso que fez um comentário racista sobre a África ser o lar dos “herdeiros” de Cam, ancestral de Noé, e portanto ser a amaldiçoada “fonte” tanto “das seitas de Vodu” quanto “da AIDS”. E se, depois da morte, eu vier a descobrir que um hipotético ser superior que é teoricamente pleno de sabedoria dá razão a esse indivíduo incrivelmente estúpido? O que sobra para uma vida tentando (e muitas vezes sofrendo por não conseguir) ser melhor na circunstância final de uma figura onipotente criadora do universo preferir a companhia de gente como esse cara ou, pior ainda, do ex-presidente da República?
Assim, minha perplexidade não seria descobrir, para retomar a canção lá do início, que Deus é um de nós
Meu grande terror existencial é que ele possa ser um deles.