O escritor Rafael Bassi lançou no fim de 2022 seu livro de contos O Dia em que Enganamos a Morte (Editora Zouk), um compilado de 18 narrativas curtas divididas em duas partes. Nas duas, o autor se dedica a forçar os limites do gênero conto. A primeira traz contos nos quais Bassi mistura a prosa de ficção com a crônica (em mais de uma delas, o protagonista tem o mesmo nome do autor e partilha com ele alguns elementos de sua biografia). Na segunda parte, há um casamento entre ensaio literário, narrativa histórica, sátira e alegoria, declaradamente influenciado por Cortázar e, principalmente, Borges (um dos contos, aliás, é imaginado como uma história do próprio escritor argentino). Em um dos contos dessa segunda parte, O Jardim do Torel, Bassi cria um personagem que é uma versão ficcionalizada do acadêmico judeu alemão Victor Klemperer, nome fundamental para o estudo do totalitarismo graças aos seus diários sobre o período de ascensão do nazismo na Alemanha e a seu estudo LTI – A Linguagem do Terceiro Reich, sobre como os nazistas perverteram o próprio idioma alemão para fins de propaganda, podendo assim levar a cabo seus projetos insanos com a naturalização do absurdo.
No conto de Bassi, Klemperer vira Victor Berlin, intelectual judeu que emigra em 1936, após a ascensão dos nazistas. Na história, ambientada em 1940, Victor Berlin enquanto se prepara para a primeira aula que vai ministrar nos Estados Unidos, onde foi aceito como professor, recorda com melancolia os tempos que passou em Lisboa, com sua mulher, antes da ascensão dos nazistas – os contatos feitos nessa primeira viagem serão essenciais para que, nos anos 1930, Berlin consiga fugir da Alemanha via Portugal. Perplexo com o estado de corrupção a que os nazistas levaram seu país e o idioma que é seu instrumento, Berlin se refugia na memória de tardes tranquilas passadas em Lisboa com Edna, sua esposa, no Jardim do Torel que dá título ao conto.
Quando está chegando ao local em que dará sua primeira aula, Victor Berlin tem um ataque fulminante do coração e morre em plena rua (na vida real, Klemperer passou o período da guerra na Alemanha, não foi deportado para os campos logo de cara porque era casado com uma alemã, mas perdeu seu posto como professor, sua casa e esteve o tempo todo sob o risco constante de deportação ou execução, até que, no caos que se seguiu ao bombardeio de Dresden, jogou fora a braçadeira com a estrela de Davi, de uso obrigatório, e ele e a mulher, Eva, fugiram a pé até o setor já controlado pelos americanos. Só morreria em 1960). A voz em terceira pessoa que relata o conto diz, após narrar sua morte súbita com o nazismo ainda no poder: “Que tempos são estes em que o sujeito não pode morrer em paz, por saber que viveu em um mundo pior do que estava antes?”
Tenho pensado muito nessa frase nos últimos meses, entre outras coisas porque fui atingido esses dias por uma constatação melancólica e brutal: talvez sejamos a última geração, ou uma das últimas, no mínimo, a viver em um mundo em que a comparação com o passado ainda gera saldo positivo. Há um risco real de as próximas gerações olharem para nosso tempo problemático como um idílio inacreditável.
De modo geral, há uma ampla corrente da história e da divulgação científica que se dedica a contabilizar as benesses de nossa atual condição neste tempo e lugar em que vivemos. Steven Pinker, expoente da chamada “psicologia evolucionária” e diretor do Centro de Neurociência Cognitiva do MIT, dedicou um livro alentado, Os Anjos Bons de Nossa Natureza, para defender a tese de que, apesar da percepção geral muitas vezes alimentada pela mídia, o mundo hoje é menos violento do que no passado. Sim, a tese é de que, apesar das grandes mortandades do século XX, elas seriam, proporcionalmente, em escala menor do que as guerras tribais da antiguidade humana, período em que a noção de diplomacia como resolução de conflitos era virtualmente nula e rachar a cabeça do interlocutor era um modo seguro de garantir a vitória em um dissenso.
Cruzando dados de pesquisas históricas, antropológicas e arqueológicas, Pinker defende que o número de mortes em combate diminuiu consideravelmente, um dos elementos para afirmar que, de modo geral, a violência vem diminuindo no mundo – tanto a tese quanto o livro são alvos de críticas ferozes, uma delas do filósofo John Gray, para quem a análise extensa de Pinker não leva em conta nesse cálculo os avanços da medicina nem os impactos a longo prazo de experiências de guerra, elas próprias passíveis de reduzir a vida dos sobreviventes. Gray também critica o olhar “positivista” de Pinker, para quem a violência diminui proporcionalmente ao grau de “civilização avançada” de um país – uma falácia que não se sustenta após o século XX do nazismo com seus massacres industriais ou das sangrentas guerras neocoloniais no Sudeste Asiático, promovidas, combatidas e financiadas pelas “pacíficas” nações avançadas. Sem falar que o número de guerras levado a cabo pelos países “avançados” teria chegado a um ponto de equilíbrio pela possibilidade do terror provocado pela proliferação das armas nucleares, não por algum impulso pacífico.
Mas já que Gray mencionou a medicina, ela é também um indício muito usado na avaliação da realidade contemporânea. Uma série de recursos médicos hoje disponíveis seria impensável em boa parte da história humana, em que emplastros e misticismos eram as curas à disposição. Antibióticos, anestésicos, dispositivos avançados de diagnóstico, vacinas, e mesmo a noção mais difundida de padrões de saneamento e higiene como direitos básicos fazem parte de um conjunto de ferramentas que hoje permitem estender a vida humana muito além da média de séculos atrás. Essa é uma conquista com suas nuances, claro. Parte dela é da humanidade como um todo, que capitaneou as pesquisas que nos levaram até este ponto. Parte é de algumas sociedades que entenderam a necessidade de um sistema de saúde universal (como o SUS, por exemplo). Porque nas sociedades sem esse sistema, essas grandes inovações tecnológicas só estão disponíveis a quem tem grana.
Essa, para mim, é a grande questão que temos para o futuro. Até onde vai a disseminação recente de um pensamento de matriz neoliberal que naturaliza que direitos só estejam disponíveis a quem puder pagar. E o que isso fará da humanidade futura? Hordas de despossuídos trabalhando sete dias por semana, doentes ou não, enquanto 1% está a salvo em suas torres blindadas e guarnecidas por bem treinadas forças de segurança.
Estamos no limiar de uma era preocupante em que elementos de distopia começaram a dar as caras no mundo real, seja no aspecto político ou ecológico. Em um livro que já citei em outra ocasião aqui neste espaço, A Terra Inabitável: uma História do Futuro, o jornalista David Wallace Wells faz um inventário particularmente desolador do que as teremos pela frente até o fim deste século com a escala sem precedentes de emissões de gases causadores do efeito estufa nas últimas duas décadas:
“Um planeta cada vez mais quente leva ao derretimento do gelo ártico, o que significa menos luz do sol refletida e mais luz absorvida por um planeta que esquenta cada vez mais rápido, o que por sua vez significa um oceano menos capaz de absorver o carbono da atmosfera e desse modo um planeta aquecendo em ritmo maior. O planeta em aquecimento também derreterá o permafrost ártico, que contém 1,8 trilhão de toneladas de carbono, mais do que o dobro da quantidade atualmente suspensa na atmosfera terrestre, e parte do qual, conforme o permafrost derrete e o carbono é liberado, pode evaporar como metano, que é um cobertor climático de efeito estufa 34 vezes mais prejudicial do que o dióxido de carbono (…). Um planeta mais quente é, no fim das contas, ruim para a vida vegetal, resultando no que chamamos de morte florestal “de fora para dentro” – o declínio e a retração de bacias de selvas tropicais do tamanho de um país inteiro e de florestas esparramadas por tantos hectares que outrora contiveram folclores inteiros –, o que significa a redução drástica da capacidade natural do planeta de absorver carbono e transformá-lo em oxigênio, o que por sua vez significa temperaturas ainda mais quentes, o que por sua vez significa mais mortes de florestas e assim por diante”.
Além disso, pesquisas recentes mostram que o uso incorreto dos medicamentos avançados que tanto custamos a desenvolver estão fazendo com que sua eficácia se perca gradativamente. Não à toa, a Organização Mundial de Saúde vem realizando a Semana Mundial de Uso Consciente de Antibióticos, campanha que alerta para o uso excessivo de remédios controlados (nós aqui no Brasil, com o nosso esquadrão de aposentados de verde e amarelo adeptos do “tratamento preventivo” durante a pandemia, demos uma boa força nessa direção, aliás).
Não é mais ficção especulativa a possibilidade no futuro do surgimento de uma superbactéria imune a todos os nossos atuais tratamentos – e isso para não falar da possível recorrência a intervalos cada vez menos curtos de novas pandemias como a que vimos em 2020, com novos agentes talvez ainda mais perigosos. Mesmo o fato louvável de que foi possível criar uma vacina para uma nova pandemia em menos de dois anos é tisnado pela pátina do desespero quando se pensa que foi exatamente neste ponto da história que saíram das cavernas da ignorância em grande número também os negacionistas dos benefícios de vacina – infiltrados até mesmo no mais insuspeitado dos meios, o da Medicina.
Não quero soar pessimista numa das últimas crônicas do ano. Nada está escrito em pedra, e talvez algumas coisas que possamos fazer possam reverter os efeitos mais traumáticos desse quadro (mas não todos, a mudança climática é uma realidade com a qual teremos que nos acostumar). Mas não é muito confortável pensar que hoje, quando imaginamos como seria mais perigoso viver em um tempo sem antibióticos e sem o mais básico saneamento, não estamos, pela primeira vez, imaginando o passado.
Podemos, sim, estar especulando o futuro.