Quando a onda do tsunami apareceu no horizonte do oceano do sul da Tailândia naquele agora distante 26 de dezembro de 2004, com as praias cheias por conta dos feriados do final do ano, as reações foram variadas.
Na maioria dos lugares, as pessoas se reuniram para ver aquele fenômeno “estranho”, mas que parecia belo e inofensivo, uma linha de espuma branca no mar azul. Quando a onda chegou, muita gente havia se juntado próximo ao mar para observar o evento. Nunca me esqueci de uma cena em que um banhista dá as costas e se abaixa para o tsunami passar, como se fosse uma onda comum. Então, aconteceu o que todos sabem.
Mas em uma outra praia as coisas foram diferentes. Uma menina inglesa chamada Tilly comentou depois: “No trimestre passado, nosso professor explicou como se formam terremotos e maremotos. Nesse dia, eu estava na praia e a água voltou estranha, tinha borbulhas, e então o mar começou a recuar rapidamente”.
Tilly lembrou das aulas e teve a sensação de que haveria um maremoto. Avisou sua mãe que alertou a todos na praia. Graças à percepção de Tilly e ao fato de sua mãe levá-la a sério, houve tempo para que as pessoas se retirassem da praia e de um hotel vizinho antes do tsunami chegar. Não houve nenhuma vítima na praia de Mai Khao.
A abordagem que utilizei no meu livro “Planeta Hostil”1, assim como nas colunas aqui na Sler, foi a de fazer uma descrição realista e abrangente dos processos de degradação ambiental do planeta. Imagine se as pessoas da praia de Mai Khao tivessem minimizado o alerta de Tilly. Não seria surpreendente se o fizessem. Afinal, o que uma garota de 10 anos sabe de maremotos? Nesse caso, não o fizeram, e se salvaram, mas em todo o mundo pessoas continuam ignorando os alertas sobre a crise climática.
Se um furacão estiver se aproximando ou se uma erupção vulcânica for iminente, não temos dúvidas de que queremos ser informados da gravidade da situação. Então, por que muitas vezes, quando cientistas e ambientalistas alertam sobre a crise climática, muitos os taxam de alarmistas? Já sabemos o suficiente sobre as transformações do planeta para termos um quadro bastante realista do que pode acontecer. E do que já está acontecendo. Há um “tsunami” se aproximando. Você não vai se preparar? Alertar as pessoas? Tomar as medidas possíveis para evitar que os danos sejam ainda mais graves?
Muitos comentários sobre o “Planeta Hostil seguem a toada de que se trata de alarmismo. No entanto, os cenários ali apresentados são conservadores, no sentido de que eu, assim como a maioria de quem escreve sobre o tema, apresentamos os cenários mais prováveis. Numa postura que não deixa de ser uma fraqueza humana, nos recusamos a admitir que as coisas podem ser muito piores. É uma visão dura demais para aceitar.
Mas o fato é que, como eu discuti na coluna sobre a “Lei de Murphy” se quisermos nos preparar para enfrentar uma situação de perigo, devemos nos preparar para o pior e não ficar torcendo para que as coisas não se tornem tão ruins assim. É a famosa frase que é um mantra da área de segurança e prevenção de acidentes: “prepare-se para o pior, torça pelo melhor”.
Pois para a coluna de hoje selecionei alguns fenômenos e mecanismos que, ainda que a maioria dos pesquisadores acredite que não devam ocorrer com grande intensidade pelo menos neste século, podem, devido a interações complexas e mecanismos de retroalimentação2 ainda desconhecidos, ocorrer de forma muito mais severa do que o previsto. Vamos a eles.
Derretimento do Permafrost
Permafrost, que em inglês significa “permanentemente congelado” e cujo termo em português é “pergelissolo”, se refere aos solos congelados que ocupam extensas regiões da Sibéria e do Canadá acima do Círculo Polar Ártico. Há trilhões de toneladas de carbono aprisionadas nestes solos, principalmente na forma de hidratos de metano.
Os hidratos de metano consistem basicamente em metano aprisionado em cristais de gelo. Se o gelo derrete, libera gás metano para a atmosfera. Estima-se que exista mais metano preso no permafrost do que o total que existe hoje na atmosfera. E o metano é um poderoso gás de efeito estufa, cerca de 80 vezes mais poderoso que o CO₂.
Os cientistas estimam a liberação de metano no permafrost entre 37 e 81% até 2100 e que essa liberação será relativamente lenta. Mas há uma complicação. O Ártico está aquecendo mais rapidamente que o resto do planeta. Se o planeta aquecer, por exemplo, mais 1 °C, o Ártico vai aquecer mais 3 °C, o que levaria a uma grande liberação do metano, com o consequente aumento da temperatura global.
E aí teríamos um mecanismo de retroalimentação catastrófico. Maior temperatura, mais derretimento do permafrost, maior liberação de metano, aquecendo a atmosfera e assim por diante. Este mecanismo pode adicionar de 0,5 a 1 °C no aumento da temperatura do planeta, acarretando um aumento geral de cerca de 3 °C, que tornaria inviável a habitação permanente de grandes áreas da Terra.
Aceleração do degelo
Devido ao aumento da temperatura da atmosfera e das águas dos oceanos, está ocorrendo degelo nas montanhas – onde nascem aquíferos essenciais para a vida e a agricultura em muitas regiões do mundo, no Ártico e na Antártica.
No Ártico, devido ao maior aumento da temperatura citado acima, estima-se que já foi atingido o ponto de não retorno, ou seja, caminhamos por uma perda total do gelo, pelo menos durante o verão. O Oceano Ártico não preocupa tanto, pois se trata de uma delgada camada de gelo cujo derretimento, por estar sobre o mar, não produziria grande efeito sobre o nível do mar.
No entanto, também há capas de gelo sobre os continentes, principalmente na Groenlândia, que se derretessem totalmente causariam um aumento de cerca de 5 metros no nível do mar. Se a Groenlândia já atingiu seu ponto de não retorno, como estimam os cientistas, essa elevação de 5 metros irá necessariamente ocorrer, embora não se saiba ainda quanto tempo vai levar.
Mas o que mais preocupa os cientistas é o gelo antártico. A Antártida é um continente com mais de 13 milhões de km2 que pode ser dividido em Antártida Ocidental e Antártida Oriental. A maior parte do continente está recoberta por uma espessa camada de gelo que pode atingir milhares de metros de espessura. Estão ali armazenados 10% da água doce do planeta. Durante anos, pensava-se que a Antártida permaneceria estável por muito tempo. Mas o degelo também está aumentando por lá muito rapidamente.
A Antártida Ocidental tem cerca de 2,3 milhões de Km2 e nela estão as geleiras que mais preocupam, a Geleira Ilha Pine e a geleira Thwaites, esta última chamada “geleira do fim do mundo”, porque seu derretimento causaria um grande impacto no nível do mar e no clima global.
Em 2020, os cientistas observaram que a geleira Twaithes está apresentando grandes extensões de fraturas, o que facilita a penetração de águas quentes, acelerando o derretimento do gelo.
E há mais, a Antártida Oriental, um lugar extremamente inóspito, na sua maior parte consistindo num planalto alto e seco cuja capa de gelo tem mais de 10 milhões de km2 e com temperaturas que podem chegar a −80 °, também está apresentando degelo.
Por isso tudo, é que, ainda que a perda de gelo na Groenlândia seja uma preocupação, é o derretimento das capas de gelo da Antártida que pode transformar a subida do nível mar numa grande catástrofe, destruindo a maioria das cidades e instalações costeiras do mundo. Ainda não sabemos quando e com que rapidez isso vai acontecer. Só sabemos que está se tornando inevitável.
Colapso da Corrente do Golfo
O colapso da Corrente do Golfo foi uma das catástrofes climáticas que fazem parte do enredo do filme “O Dia depois de Amanhã”, um bom filme de ação, mas que conta uma história sem muita base científica. O único aspecto correto do filme é que a Corrente do Golfo pode de fato colapsar.
A Corrente do Golfo (Gulf Stream em inglês) é uma grande célula de circulação oceânica que começa no Mar do Caribe, percorre quase toda a costa da América do Norte e prossegue pelo Atlântico Norte até a Europa. Suas águas quentes propiciam as temperaturas mais amenas que permitem a existência de grandes populações na Irlanda, Grã-Bretanha e boa parte do norte da Europa. Ela também influencia o clima global.
A desestabilização da Corrente do Golfo pode ocorrer por causa do derretimento das geleiras, principalmente na Groenlândia, por conta da liberação de água doce, que apresenta menor densidade e poderia afetar as águas profundas onde nasce a corrente. Além disso, sua estabilidade depende de outros sistemas de circulação oceânica que também estão sendo desestabilizados pelas águas mais quentes e menos salinas produzidas pelo degelo.
Seu colapso causaria a ocorrência de invernos muitos mais frios e verões muito mais quentes na Europa, cujo clima ficaria semelhante ao da Sibéria, só que piorado, o que inviabilizaria a vida na Europa como vemos hoje. Além disso, haveria impactos ainda imprevisíveis, mas certamente de grande escala, no clima global, provavelmente com intensificação dos eventos extremos de tempestades, ondas de calor e secas. É quase impensável. Mas pode acontecer antes do que o previsto.
Tempestade perfeita
E se várias coisas acontecerem ao mesmo tempo? Como sabemos, os sistemas naturais são complexos e não-lineares3. E estão interconectados. Assim, o derretimento do permafrost causaria o aumento da temperatura global, que levaria ao derretimento das capas de gelo, afetando o nível do mar e o padrão de circulação dos oceanos, que por sua vez influenciam o clima, provocando mais tempestades, ondas de calor e seca, e assim por diante.
Se os processos que descrevi acima ocorrerem simultaneamente e de forma mais acelerada do que o previsto no momento (e até cientistas sérios estão sendo surpreendidos pela rapidez com que as coisas estão acontecendo) o cenário para o mundo, sem exagero, é apocalíptico.
Bilhões de pessoas teriam que deixar suas casas, regiões e até países em busca de condições em que possam sobreviver, causando o colapso total da sociedade moderna. Devemos torcer para não acontecerem, mas é melhor estarmos preparados para o pior.
So long…
Esta é a última das colunas desta minha primeira temporada na Sler. Preciso agora de um período sabático para me dedicar ao projeto do meu novo livro, onde pretendo investigar como será a vida da humanidade no planeta em transformação tornado, por nós mesmos, muito mais hostil para a vida humana.
Mas não pretendo deixar a Sler. Todos os meses, enviarei aos editores um artigo que poderá ou não ser publicado no tempo e na forma que forem melhores para a plataforma. Nessa nova série, meu foco será nas soluções para os problemas apresentados no livro Planeta Hostil e nas colunas da Sler. Espero continuar contando com a companhia de vocês.
Abraços e até breve!
1O livro “Planeta Hostil” descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta. Pode ser uma leitura difícil, mas é necessária. O livro pode ser adquirido em livrarias físicas e online de todo o Brasil, no site da editora Matrix (www.matrixeditora.com.br) e em lojas online.
2Processo de retroalimentação (feedback) é todo processo cujo resultado afeta a causa inicial. Como por exemplo: o aumento da temperatura global causa o aumento dos incêndios florestais, que liberam carbono para a atmosfera, contribuindo para o aumento da temperatura.
3Apresentei uma descrição de sistemas complexos não lineares numa coluna anterior aqui da Sler.
Observação final: para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Peter Prokosch / GRID-Arendal
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