Para ler ouvindo Como nossos pais, de Belchior, na voz de Elis Regina
Quando recebi o vídeo da campanha dos 70 anos da Volkswagen com Maria Rita e uma Elis Regina deepfake pelo Whatsapp, me encantei. Cheguei a ensaiar uma lagriminha, pensando em como gostaria de ver meu pai “vivo de novo” atrás do volante dos Monzas que dirigiu nos anos 1980 por conta da computação gráfica. Ou dirigindo um carro moderno, elétrico, com os traços envelhecidos por inteligência artificial.
Mas daí vi o comercial pela segunda vez. E já nas primeiras imagens começou o que só consigo classificar como uma tempestade de dissonância cognitiva. Porque o desconforto que me deu ver a filha mais velha do que a mãe, num “deepfake sem vergonha”, como li por aí, a música carregada de história dizendo na letra algo que não condizia com o espírito leve das imagens, o paralelismo entre a Kombi, um veículo de trabalho reconhecidamente acessível, e a nova ID. Buzz, elétrica, que custará em torno de R$ 300 mil… era muita contradição por segundo passando à minha frente.
O desconforto continuou porque, à segunda vista, como se a ideia de juntar mãe morta aos 36 anos com filha de 45 anos por si só já não fosse suficientemente esdrúxula, a lógica da escolha de uma música que diz que “apesar de termos feito tudo o que fizemos, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais” me escapou completamente. Ocorre que para os mais jovens (que não têm na memória o contexto histórico da canção) ou para os menos problematizadores (que têm mais coisa a fazer do que se estressar por uma peça de propaganda), a incongruência entre letra e mensagem publicitária não existe. Como argumentou uma amiga: “dá pra considerar que apesar de tudo o que fizemos para nos desconectarmos dos nossos pais, brigando, reclamando e tentando mudar tudo, acabamos inevitavelmente ficando iguais a eles”. Posso desejar que seja diferente? Sempre. Posso discordar? Dificilmente.
Outro ponto levantado por gente que entende do riscado nas redes sociais e que provavelmente colaborou com o mal estar foi a questão dos direitos de imagem de Elis e direitos autorais de quem registrou os milhares de fotos e vídeos que provavelmente foram usadas para a produção da peça. Problema meu? Claro que não. Deixemos isso para os especialistas. Mas que é estranho, é. E tem ainda a questão: Elis aprovaria esse uso da imagem dela?
Eu me emocionei? Sim. Alguém vai comprar um VW por causa da campanha? Duvido. Está todo mundo falando da Volkswagen, marca que hoje não preza exatamente pelo charme? Absolutamente. Então, se a missão dos “criativos” (ainda vou escrever sobre o uso escalafobético desse adjetivo como substantivo pelos publicitários) era ganhar engajamento, ela foi cumprida com louvor. Tanto que aqui estou eu, usando este espaço semanal que tanto prezo para tratar do assunto.
Por último, mas certamente não menos importante, justamente por todo incômodo que a peça me causou, fiquei encanzinada tentando entender a faísca que detonou a lagriminha citada lá no começo. Seria a ideia de trazer uma artista do além-túmulo para o roteiro, saudada por tantos entusiastas como inovadora – embora o uso de mortos na publicidade esteja longe de ser uma novidade? A resposta para isso, porém, que eu tinha decidido que não tinha na primeira versão desta coluna, veio na forma de uma tecnologia bem menos contemporânea do que a inteligência artificial: um LP.
Pouco antes do almoço desta quarta-feira, inspirado pela polêmica nas redes, meu marido botou para tocar na vitrola a primeira faixa do lado A do disco Falso Brilhante, que comprou quando Elis ainda estava entre nós. Ali ficou clara a fonte de toda a emoção causada pelo “filme” em debate. Não foram os fuscas, brasílias, passats e paratis que passaram pela minha vida que me arrepiaram, mas a lembrança desse disco lançado em 1976 tocando nas férias passadas nas casas das tias que cuidaram que eu entendesse direitinho do que falava a letra da música. Foi o trabalho de César Camargo Mariano e todos os músicos envolvidos com o arranjo primoroso que nos arrepia ao primeiro acorde.
Ouça aqui:
* Polêmica do anúncio à parte, uma coisa é certa: a compreensão do verso “é você que ama o passado e que não vê” é a mesma em qualquer geração. Pergunte à criança mais perto de você o que ela ouve e comprove. Neste caso, o novo nunca vem.
Foto da Capa: Reprodução do Youtube