Berlim, junho de 2001. Caminhávamos pela avenida Unter den Linden em direção à Alexanderplatz. Logo após a catedral, sobre a ponte, o tempo suspenso. Estávamos sozinhos, bem no meio da Karl-Lieberknecht-Brücke, e cercados por várias viaturas policiais.
Demorou um pouco para entendermos a situação. Com um megafone, “convidavam-nos” a sair dali. A compreensão se deu somente no mirante da torre da televisão, pelo bulício de alunos de uma escola, também em visita ao local. Exclamavam, entre surpresos e empolgados: “Die Bombe, Die Bombe!”
Horas depois, na chamada de um noticiário, a história ficou mais clara. Durante as escavações para a construção de um centro comercial, fora encontrada intacta uma bomba da II Guerra. Uma equipe especial teria que desarmá-la.
Essa lembrança vem-me à memória quando se concretiza a entrega do inquérito de denúncia sobre a recente tentativa de golpe de Estado no Brasil. A Procuradoria Geral da República baseou seus argumentos em graves e já bem conhecidas acusações.
Ligo a bomba, no caminho daquele passeio em Berlim, a conluios ideológicos extremados e totalitários: disso passo a um outro relato.
Durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939), o “generalíssimo” Francisco Franco contou com o apoio da Alemanha nazista e da Itália fascista. A partir da vitória naquele golpe militar, ele se tornaria um brutal ditador, até a sua morte em 1975.
Hitler aproveitou-se do conflito na Espanha para intensificar a fabricação de bombas e preparar um potente arsenal bélico. A Luftwaffe – força aérea alemã – sob o comando de Hermann Goering, treinou pilotos e testou novas máquinas mortíferas. Em 1937, várias cidades espanholas, dominadas pelos republicanos, sofreram pesados bombardeios. Entre elas, uma vila de 5000 habitantes, Guernica. Um episódio de horror, imortalizado por Pablo Picasso na pintura homônima.
Durante aquele período, em outra pequena aldeia do País Basco, foi lançada uma bomba que nunca iria explodir. Permaneceu intocada por anos, encravada na praça central. Ninguém ousara encostar nela por várias décadas.
Certo dia um aldeão decidiu que era hora de tentar desarmá-la. Pegou o que acreditava que pudesse ser útil, alicates, chaves de fenda e outros instrumentos, e iniciou seu intento. Logo receberia ajuda de outros. Tornaram-se muitos, cercavam-no; por curiosidade, para dar palpites ou para apoiar, como podiam, em solidária intenção. Se a bomba fosse explodir, que estivessem juntos. Terminariam de vez com aquela constante ameaça.
Ao fim da tarde, constataram que a bomba nunca detonara por já estar desarmada. Algum defeito ou avaria, conjecturas. Decidiram que a levariam para a localidade vizinha, sede municipal da região. Queriam se livrar daquilo que fora, até então, um monumento ao medo e à incerteza. Um achado fez com que mudassem de planos.
Entre as peças do artefato, encontraram um pedaço de papel manuscrito. Nele, apenas uma frase, num idioma que não identificaram. Não era basco, nem espanhol, tampouco inglês. Alguém sugeriu que só poderia ser alemão.
A jovem Mirentxu – nome popular na região – foi lembrada. Ela havia passado a infância em Hamburgo, acompanhando o pai que lá se empregara por alguns anos. Talvez soubesse decifrar a mensagem.
A população permanecia atenta. Mirentxu não se demorou muito.
Em voz alta, ela traduziu o que estava escrito no pequeno pedaço de papel. Um silêncio atônito dominou a praça, até que a troca de olhares multiplicou-se em murmúrios e considerações; detonaram falas.
Ficou acertado que a bomba deveria permanecer na cidade. Passaria a representar a capacidade humana de resistir. Um símbolo de coragem e empatia, mesmo em ambiente hostil. A homenagem do povo daquela aldeia a um indivíduo que sozinho soube vencer a intimidação de um regime perverso. Fez o que estava a seu alcance, não se tornou apenas mais um cúmplice, indiferente, no fluxo da manada.
No gesto e legado do anônimo trabalhador de uma fábrica de bombas, o manifesto de fé na civilização: “Saudações de um operário alemão que não mata inocentes”.
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Ilustração da Capa: Arte do Autor