É muito curioso que, numa época de derrocada do espaço público tradicional, se fale tanto de educação para a cidadania (digo “tradicional” referindo-me àquele espaço de encontro entre alteridades visíveis uns aos outros ou audíveis através e sua palavra argumentada). É verdade que não há um conceito unívoco de cidadania que, da Grécia aos dias de hoje, pudesse albergar uma semântica uniforme. As transformações sofridas pelo espaço público modificaram não apenas nossa noção tradicional de cidadania – como atributos da competência e da consciência com vistas a fins comuns – como também aquela de educação. O problema é que a relação entre educação e cidadania, que vai ganhar corpo na formação dos sistemas públicos de ensino (1789), não tem mais nada a ver com a conotação que lhe emprestamos hoje.
A educação escolar pública teve uma função importante no início da modernidade que foi aquela de impedir que o avanço vertiginoso da crítica iluminista, demolindo nossas amarras normativas (tradição, religião, autoridade), e tentando conter a velocidade irrefreável da técnica, da urbanização e da industrialização rompesse o elo que ligava o passado e o futuro: cabia, assim, à escola, nos alertar para o fato de que éramos todos “herdeiros” (de uma tradição, de uma cultura) e, ao mesmo tempo, “legatários”, mesmo que tal legado não pudesse ser antecedido de nenhum testamento: cada geração teria que reinventar tal herança, segundo sua acuidade ou miopia! A escola, como instituição “conservadora”, estava situada, assim, entre dois tempos e dois espaços. No tempo, ela se colocava entre as aquisições do passado e uma perspectiva de futuro: o que fazer desta herança em termos de reprodução ou de inovação. Já no quesito espaço, ela se situava em um intermezzo entre a esfera afetual e protegida da família e a luz do espaço público, profissional e político. Seria neste último onde exerceríamos nossa cidadania “ativa”: uso da consciência judicativa e de competências para decidir sobre destinos comuns.
A grande inquietação das democracias – o lugar onde supostamente exercemos nossas cidadanias – era o seu medo dos ‘ignorantes’: o medo platônico de que os destinos da Polis estivessem nas mãos da simples “opinião” (e não nas dos detentores da Verdade). Mas, o que é que os “ignorantes” ignoram? E por que tal ignorância os desqualifica para o jogo democrático? A resposta a esta questão é relativamente simples e marcada pelo selo histórico da “infantilização do povo”: ele, o povo, ignora as forças que regem seu próprio destino individual e social (inconsciência ou, para usar um termo outrora caro às esquerdas, “alienação”), supondo-se que a passagem pela escola formal poderia fornecer os atributos que a consciência precisa para a participação nos negócios decisórios. O problema é que aquelas instâncias definidoras da função escolar (tempo e espaço) se modificaram: a família “nuclear” perdeu sua estabilidade e cada vez mais cedo se coloca os filhos na escola (escolarização que se tornou interminável, com as célebres “formações contínuas”, fazendo de cada um de nós eternos escolares!) e o espaço público tornou-se espaço “publicitário” de administração do desejo com vistas ao consumo. Não é mais a consciência de um projeto comum que nos mobiliza politicamente, mas a possibilidade de extrair benefícios privados a partir de uma determinada escolha.
Restou, assim, o segundo atributo da cidadania, a competência.
Nestes tempos das redes “sociais”, nós dispomos de um aumento quantitativo e acumulativo de informação. O que parece faltar é a consciência necessária para avaliar sua qualidade, aplicar princípios e diagnosticar os fins morais (as consequências) de nossas decisões, uma vez que a escola agora se preocupa essencialmente com índices e aprovações (IDEB, ENEM, Vestibular, concursos, PISA) por onde se mede, hoje, sua produtividade e o seu sucesso: ser competente, do ponto de vista escolar, deixa de ser um atributo intelectual e moral, e passa a ser um instrumento do competidor. Isto corresponde, na esfera pública, à ascensão da tecnocracia, que é uma forma de redução da vida pública, do sentido republicano de coisa comum e, por fim, da derrocada da democracia como construção consciente do destino comum.
Em resumo, estamos adentrando uma época nova, em que a escola perderá sua função formativa (vai se tornar escola instrumental) e o cidadão se definirá pela sua capacidade de possuir coisas…
Foto da Capa: Paulo Pinto / Agência Brasil
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