O professor da Faculdade de Medicina da Bahia, Nina Rodrigues (1862-1906), conhecido por suas ideias racialistas e lombrosianas, escreveu certa vez um artigo para uma revista jurídica do Rio de Janeiro defendendo a criação de um duplo código penal no Brasil: um para os brancos e outro para os negros. A razão? Simples: como os negros não eram capazes, por sua própria condição étnica, de compreender a natureza moral do crime, também não podiam ser punidos da mesma forma que um branco, que tinha esta competência.
O argumento “racialista” ia ainda mais longe: também no quesito cognitivo não se podia esperar grande coisa dos negros. Isto teve uma consequência escolar gravíssima: chegada à República, com suas intenções cidadãs universalistas, visando retirar cada um de sua paroquialidade cultural para elevá-lo a uma razão transcendente (científica), seria perda de tempo dar escola republicana para negros, já que eles não podiam ir além do que sua raça permitia em termos cognitivos. Gobineau, pai desta “ideia” e que fora membro do serviço diplomático francês no Segundo Império, chegou a provocar, para confirmar sua hipótese racialista, “Apontem-me onde está o Baudelaire africano!”.
Esta perversa tradição intelectual parece ter sido levada por nossos educadores mais longe do que muitas vezes podemos imaginar com nosso ingênuo progressivismo, o que conduz nossos centros de formação de professores, sobretudo os situados nas universidades públicas, a se ocuparem quase exclusivamente da escola e das crianças das “classes populares”. Claro que é nela onde encontramos os piores índices e as condições mais precárias de ensino: o que não tem absolutamente nada a ver com “etnias” e sim com condições socioeconômicas. O problema é que, ao estabelecer esta justa prioridade, deixamos de examinar como é que as escolas privadas estão formando a cabeça de nossas futuras elites!
A coordenadora de uma conhecida escola privada do Recife resolveu fazer a aposta e realizar uma interessante – e inquietante! – pesquisa de mestrado. Ela colheu nas páginas de nossos jornais quatro exemplos de atitudes e comportamentos sociais, moral e institucionalmente condenáveis, tais como o racismo, o machismo, a homofobia e a corrupção, e solicitou que alunos desta escola de elite, das 7ª e 8ª séries do ensino fundamental, comentassem tais notícias. O resultado é surpreendente: a esmagadora maioria dos alunos consultados aceitava, apoiava ou considerava “normais” tais comportamentos!
Poderíamos levar muito longe o exame sociológico, cultural ou da tradição histórica que informa tais atitudes, mas teríamos que desviar um pouco o foco de nossa atenção: ao invés de acharmos que o chavão “educação para a cidadania” é tema para pobres “excluídos”, deveríamos estar atentos às formas como o “soberano” é educado. Afinal, todos os agentes públicos e privados envolvidos nas recentes acusações de corrupção que estraçalham nossas instituições passaram por escolas de elite ou educam seus filhos nelas: escolas construtivistas, piagetianas, paulo-freireanas, waldorfianas e, ponto comum, todas preocupadas com a “formação cidadã”!
Tudo isto me faz lembrar o professor Haïm Ginot, judeu sobrevivente de um campo de extermínio nazista, que escreveu um livro em 1947 (O professor e a criança) em que afirmava: “Sou um sobrevivente do Holocausto e meus olhos viram coisas que nenhum homem deveria ver: câmaras de gás construídas por engenheiros formados; crianças torturadas por médicos diplomados(…). Inocentes fuzilados por soldados escolarizados. Tenho todas as razões para suspeitar da educação!”
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