Les enfants terribles (as crianças terríveis) é um livro de Jean Cocteau lançado em 1929. Conta a história de dois irmãos, Elisabeth e Paul, que escolhem se isolar do mundo na adolescência, até serem lançados no turbilhão da vida adulta (spoiler: a história é trágica). O livro foi adaptado para o cinema em 1950, numa colaboração de Jean Cocteau com o diretor Jean-Pierre Melville. Ainda inspirou uma ópera de Philip Glass, o ballet La Boule de Neige (Fabrizio Monteverde e Pierluigi Castellano), e até mesmo um filme mais recente (2003): The Dreamers, de Bernardo Bertolucci.
Mas o tema desta coluna não são os irmãos do livro de Cocteau e nem mesmo crianças. O assunto são os fenômenos El Niño (o menino) e La Niña (a menina), que a cada ano que passa se mostram mais influentes no clima do Brasil e do mundo. Eu já falei sobre eles em colunas anteriores aqui na Sler e no meu livro “Planeta Hostil”1, mas as informações sobre esses eventos estão sendo atualizadas a cada dia, e gerando muita discussão entre os especialistas. Dado o impacto que podem ter em nossa vida futura, é importante voltar ao assunto.
El Niño e La Niña
O El Niño foi o primeiro fenômeno a ser caracterizado e foi assim denominado pelos pescadores peruanos porque tende a aparecer na época do Natal (El Niño, portanto, se refere ao Menino Jesus). O El Niño se trata do aquecimento anormal das águas do Pacífico Equatorial, que são normalmente frias.
A dinâmica atmosférica e oceânica causadora do El Niño é a seguinte. Os ventos alísios, que carregam o ar quente das regiões tropicais para o sul (em nosso hemisfério) são desviados para oeste por conta da rotação da Terra (que gira para leste). Esses ventos empurram as águas superficiais mais quentes para oeste, o que faz com que águas mais frias, do mar profundo, ascendam na costa, constituindo um fenômeno chamado de ressurgência (que também ocorre na costa do Sudeste do Brasil, por razões diferentes).
As águas frias do oceano profundo são mais ricas em nutrientes, e por isso atraem uma maior quantidade de peixes. Devido a esse processo, o mar da costa do Peru é um dos mais piscosos do mundo. No entanto, de tempos em tempos, por razões ainda não bem compreendidas, os ventos alísios enfraquecem e menos água fria ascende à superfície, resultando no aquecimento das águas – o fenômeno El Niño. Os pescadores se preocupam com isso, pois a águas mais quentes tem menos nutrientes, o que reduz a quantidade de peixes.
O La Niña é o fenômeno oposto. Os ventos alísios se intensificam (também por razões não bem compreendidas) e as águas esfriam. Dessa vez os pescadores peruanos ficam menos aborrecidos, mas os efeitos do La Niña podem ser tão pronunciados para o clima global e do Brasil como os do El Niño, como veremos a seguir.
Enos
Esse é o termo científico aplicado a esses fenômenos. Significa El Niño Oscilação Sul (em inglês Enso – El Niño Southern Oscilation). Embora às vezes referidos como ciclos, estas fases de água mais aquecidas ou mais frias não se sucedem necessariamente. A condição normal, como eu disse acima, é os ventos alísios empurrarem a água superficial mais quente para oeste, provocando a ressurgência, e mantendo as águas relativamente frias. O Enos acontece quando as águas ficam anormalmente mais quentes ou mais frias.
Também a ocorrência de um fenômeno, por exemplo o El Niño, não significa que necessariamente seja sucedido pelo efeito contrário, o La Niña. Pode ocorrer um deles, depois as condições voltarem a normalidade e o mesmo fenômeno voltar a se desenvolver.
No entanto, nos últimos anos, tem-se observado tanto o aumento da frequência das anomalias como a tendência de se sucederem, seja imediatamente, seja após um curto período de neutralidade (que seria a condição mais normal).
Recentemente tivemos a ocorrência do La Niña em 2021-22, El Niño em 2023-24 e agora, depois de alguns meses de normalidade, haverá o retorno do La Niña, que deve começar a atuar em setembro deste ano.
O Enos exerce grande influência não apenas no Brasil, como veremos a seguir, mas em todo o mundo. As ondas de calor e queimadas que ocorreram em anos recentes na Europa e na América do Norte foram atribuídas, pelo menos em parte, à ação do El Niño.
Não há consenso na comunidade científica sobre se o Enos está sendo intensificado pelas mudanças climáticas. No entanto, se considerarmos que os controles principais desses fenômenos são a atividade dos ventos alísios (fruto do aquecimento diferencial da atmosfera) e a circulação e a temperatura dos oceanos, todos afetados pelo aquecimento global, é improvável que não o sejam.
Efeitos no Brasil
Os efeitos do Enos nas regiões Sul e Norte do Brasil são bem estabelecidos. O El Niño causa aumento das chuvas no Sul e mais secas no Norte. A grande seca na Amazônia em 2023 foi causada pela atuação do El Niño. Assim como as chuvas no Sul em 2023 e agora em 2024. O sul da região Centro-Oeste sofre efeitos semelhantes à região Sul do Brasil, enquanto o resto da região tem o mesmo regime da região Sudeste
Os efeitos nas regiões Centro-Oeste (exceto a sua região sul – onde fica boa parte do Pantanal) e Sudeste são mais controversos. Alguns cientistas afirmam que “não há influência significativa dos eventos El Niño e La Niña no regime de chuvas no Sudeste”.
No entanto, as observações que eu fiz até agora me permitem sugerir que há sim alguma influência.
Vejamos algumas ocorrências dos últimos anos e décadas. A grande estiagem de 2015, quando os reservatórios do Sudeste e mesmo até mesmo do sul da Bahia baixaram para níveis críticos e a cidade de São Paulo quase chegou ao “Dia Zero” – o dia em que todas as torneiras secam, foi um ano de El Niño particularmente forte.
Os quatro últimos eventos de chuvas catastróficas em Petrópolis (e em outros locais do Sudeste), que ocorreram em 1988, 1998, 2011 e 2022 foram em anos de La Niña.
Assim, temos um cenário para o Sudeste em que durante os períodos de atuação do El Niño o clima fica mais quente e seco e durante os períodos de atuação do La Niña ocorre um excesso de chuvas.
Os cientistas dirão que são observações pontuais, e que precisam mais dados para de fato concluir que essa relação existe. O que é compreensível. No entanto, as coincidências dos últimos eventos sugerem que, pelo menos por cautela, no próximo verão, em que haverá atuação do La Niña, Petrópolis e as demais regiões do Sudeste devam redobrar a sua atenção para a possibilidade de chuvas intensas.
Perspectivas futuras
O sistema climático da Terra é extremamente complexo e está sendo modificado de maneiras que ainda não compreendemos. Por isso, é natural que os cientistas sejam cautelosos em suas previsões e diagnósticos.
Este ano, deveremos ter o final do atual evento El Niño até junho, um período de neutralidade (a antiga normalidade – que está ficando cada vez mais curta) durante o inverno do hemisfério sul e o verão do hemisfério norte, e por volta de agosto-setembro o retorno do La Niña. No caso do verão do hemisfério norte, a condição de neutralidade vai permitir separar os efeitos do El Niño e do aquecimento global nas ondas de calor (e queimadas) que têm ocorrido em anos recentes.
Esse último mês de maio foi o mais quente da história, numa sucessão que já dura 11 meses. Se o calor continuar durante o verão, isto significa que se trata de um aquecimento permanente, que não vai variar significativamente em função do Enos. O que será uma notícia muito ruim.
De qualquer forma temos que nos preparar para um cenário em que todos os eventos extremos: chuvas torrenciais, ondas de calor, secas, entre outros, ficarão mais frequentes e mais intensos. Como acontece com os demais sistemas naturais, vai haver variações tanto na intensidade quanto na frequência. Haverá anos mais tranquilos, em que pode parecer que o pior já passou. Mas será uma ilusão. Nesses períodos, não podemos deixar a complacência tomar conta.
Se formos sensatos, vamos aproveitar os períodos de trégua, como o que o Rio Grande do Sul deve experimentar com as chuvas durante a atuação do La Niña, para nos dedicarmos com afinco à preparação para futuros eventos extremos. Porque não se engane, eles voltarão a acontecer. E serão ainda piores.
1“Planeta Hostil”, meu livro que descreve de forma abrangente os processos de degradação ambiental do planeta, pode ser adquirido em livrarias físicas e online de todo o Brasil, no site da editora Matrix (www.matrixeditora.com.br) e na Amazon.
Observação final: para vídeos e textos adicionais confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Foto da Capa: Freepik/ Gerada por IA
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