Ele a enxergou na multidão, os olhos se cruzaram uma vez. Ela o observou dançar, sorrir, cantar. Alegria, leveza, sedução. Os olhos se cruzaram duas vezes. Ela notou uma gota de suor que escorria pelo pescoço bronzeado do sol. Fazia calor naquele domingo de dezembro em Porto Alegre. A rua onde eles se encontraram estava fechada e foi tomada por uma multidão que celebrava a vida ao som de bandas covers. Um prosaico encontro festivo em um fim de tarde daquele bairro boêmio. Ele se posicionou em um raio de distância, num ângulo diagonal no qual pudesse vê-la dançar e assim trocaram sorrisos por um tempo. Foi quando a trilha sonora fez o convite: “o meu corpo balança querendo encontrar o seu amor. O swing do Olodum me leva. Com você eu vou”. Na troca de olhares seguinte ela fez o primeiro movimento: o cumprimentou de longe. Ele tomou coragem. E assim, ao som da música do Gilsons, os dois se conheceram.
Ali eles trocaram as arrobas do Instagram. Ela o adicionou. A arroba do Instagram é o novo “posso pegar teu telefone?”. O Instagram tem mais informação, é verdade. O perfil de rede social é mais do que um chat para troca de mensagens. Ali ela soube quem são os amigos em comum, como ele se descrevia na bio, quais os posts ganhavam relevância de ir para o feed e quais posts iam para o stories. O Instagram diz mais sobre uma pessoa do que qualquer aplicativo de relacionamento. Eram poucos contatos em comum, uns vídeos de selfie, muitas fotos de momentos com os amigos. No meio, havia um post com uma mensagem “não vamos parar, o ladrão não sobe a rampa”, 30 dias depois das eleições. Ela fechou os olhos, deslizou o dedo e encontrou o sorriso bonito num post com amigos, outro no trabalho, outro num churrasco. Ele é um cara muito querido, foi a conclusão que ela chegou.
A conversa fluiu na mensagem direta do Instagram, falaram sobre o lugar em que se conheceram, sobre o bairro, sobre os acasos da vida, sobre os amigos em comum. Ela achou a conversa interessante. Ele colocou o nome dela na lista para a festa de um amigo, “só para convidados”. Ela adorou a iniciativa, pesquisou o lugar, começou a pensar na roupa, na maquiagem e esqueceu o stories no qual ele repostava um card com “Brasil acima de tudo, deus acima de todos” com um vídeo clamando por indignação contra as eleições. Enquanto se arrumava lembrava que eles ainda não tinham nem se beijado na boca, mas ele já a levava em uma festa de amigos. “Um homem decidido”, ela disse para si mesma enquanto se olhava no espelho e mandava foto do modelito para uma amiga aprovar.
A noite foi regada à espumante – a bebida preferida dela – e muitas novas amizades. Ele a apresentava para os amigos e amigas, recomendava para não a deixarem sozinha quando ele se afastasse. Um homem cuidador, foi a nota mental daquele momento. Quando ele finalmente se aproximou para ficar ao lado dela, os dois se abraçaram, brindaram, riram das coincidências, da presença, do inusitado e beijaram-se sob os olhares dos amigos que aplaudiam o novo casal. Ela gostou. Ele gostou. Beijaram-se outra vez e mais uma e assim a noite seguiu até que ela decidiu ir para casa e ele decidiu ficar. Ele a levou até a rua, esperaram o uber juntos, ele abriu a porta do carro para ela entrar e se despediram. Ela estava empolgada com o primeiro encontro.
O segundo encontro demorou poucos dias. Marcaram em um bar no mesmo bairro em que se conheceram. Ela achou que seriam só os dois, mas não. Outra vez, a vida social se impôs, mais um grupo de amigos. Todos muito animados e leves. Ele é um cara popular foi a conclusão que ela chegou. “A próxima vez será só nós”, ele garantiu ao se despedir. O encontro a dois foi o terceiro. Na véspera ele havia reservado um restaurante para o jantar, mas ela desmarcou. Ela garantiu que não foi charme, foi trabalho. No dia seguinte, decidiram caminhar pelo bairro e escolher o restaurante juntos. De mãos dadas como um casal de namorados seguiram pelas opções da vizinhança: ele queria parrilla, ela japonês. Ela ganhou porque ele é um cavalheiro.
Conversa vai, conversa vem, o primeiro choque: ele não havia tomado nenhuma dose de vacina para Covid-19. Os antivacinas realmente existem, ela pensou. Que experiência antropológica! Porém, a investigação de campo que ela queria fazer sobre as motivações, a decisão, o contexto foi interrompida por ele. Naquele jantar a dois eles fechavam o primeiro acordo do casal: não vamos falar sobre política. Ela sabia que não falar sobre política não seria factível. Ela quis aristotelicamente argumentar: “Mas o ser humano é um animal político!”. Não fez, apenas sorriu, concordou e mudou de assunto. Quantas vezes mesmo você foi para a Bahia? Qual o signo? Você corre quantas vezes por semana? E assim a noite transcorreu agradável. Saíram os dois de mãos dadas pelo bairro. Ele caminhou com ela até em casa. Ela lembrou do dia em que se conheceram, da música que tocava e cantarolou outra estrofe do mesmo som “meu bem, quero ser sua namorada”.
O quarto encontro não tardou. Ele disse a ela que estava com mal-estar, mas queria vê-la antes dela viajar. Ela iria para praia. Empolgada, o convidou para provar uma de suas especialidades. Ela gosta de cozinhar, não é uma chef gastronômica, mas prepara umas comidinhas saudáveis. Quando ele chegou, ela ainda estava na cozinha manipulando os ingredientes. Ela então encontrou uma serventia para aquele homem decidido, cuidador, popular: você fica responsável pela bebida, escolhe, abre e serve, ela disse. E assim os dois organizaram a mesa, sentaram-se, brindaram, jantaram. Falaram sobre relacionamentos, pets, planos, sonhos, histórias de família. Ele confessou segredos “não me abro assim tão fácil”, disse ele. A vulnerabilidade dos homens a conquista. Aquele tom confessional meio sem querer e ao mesmo tempo querendo enlaçava afeto e intimidade. Ao se despedirem combinaram de se ver assim que ela voltasse de viagem, já até decidiram aonde iriam. Antes de dormir, ao acessar o Instagram ela sorriu sozinha: ele havia tirado uma foto e postado no stories a marcando. Ela não acreditou no que viu, voltou, olhou de novo. Sim, ele havia feito o registro do jantar e publicou a imagem com a voz de Marisa Monte ao fundo “e no meio de tanta gente eu encontrei você”. Logo, a musa Marisa! Ele tem bom gosto musical, pensou ela.
No dia seguinte, como previsto, ela viajou, passaria uma semana ou dez dias fora, mas tinha uma certeza: a contagem regressiva para o encontrar quando voltasse. Os dois seguiram conversando todos os dias e trocando mensagens. Ele a chamava de amor, ela achava precoce, mas fechava os olhos. Preferia não enxergar que ele gravou um vídeo no qual o cachorro dele fazia cocô na calçada e ele não juntava, apenas comentava “deixa aí, depois eu volto”. Ele deve ter voltado, pensou ela que recolhe não só o cocô do próprio cachorro como de outros que encontra no caminho. Muita saudade, ele mandava mensagens de áudio de manhã, de tarde e de noite. Ele gostou mesmo de mim, ela celebrava!
Foi em uma sexta-feira, cinco dias depois do último encontro, que ele mandou uma mensagem-bomba: “Amor, uma má notícia, estou com Covid”. A vontade dela era dizer bem-feito, quem mandou não se vacinar! Ela queria dizer vai agora no posto e toma pelo menos uma dose, mas ela disse: “Puxa, que chato! Tenho certeza de que será leve e você vai estar forte outra vez em breve”. Naquela tarde, ela procurou a farmácia mais próxima e fez o teste, apesar de estar assintomática, ficou preocupada com as pessoas que seguiriam com ela nos dias de descanso durante a viagem. O exame deu negativo, ela tirou foto e mandou para ele “alívio! Pode ficar tranquilo, não me passou”. Abriu os olhos e lembrou do episódio que ele havia relatado: um mês internado com pneumonia provocada pela Covid em um hospital ocupando um leito na oncologia durante a superlotação da segunda onda da doença.
Se pudesse falar sobre política, explicaria para ele que a vacina não é uma escolha individual porque afeta a vida em comunidade. O leito que ele ocupou era para pacientes com doenças graves que podem ter ficado sem atendimento naquele mês de internação. Mas ela lembrou como ele era cuidadoso, decidido, querido, popular, fechou os olhos e se calou. O silêncio foi até 8 de janeiro. Neste dia, ele defendeu os vândalos que invadiram a sede dos Três Poderes em Brasília e ela defendeu a democracia. A troca de mensagens virou alertas de fake news de um lado e reações negacionistas do outro. Ela lembrou do dia em que se conheceram e do som que tocava quando ele a abordou, depois do swing do olodum e do pedido de namoro a sequência da letra dizia assim: “várias queixas de você, por que fez isso comigo? Vááááárias queixas!”. Várias queixas, por sinal, é o nome da música. E foi assim que o romance acabou.