Tudo o que o filósofo coreano Byung Chul Han descreve em sua obra “Capitalismo e instinto de morte” (Vozes, 2022) serve para o cenário político que vemos nascer com o resultado do primeiro turno das eleições de 2022. O crescimento do bolsonarismo apontado pelos críticos é, na verdade, também essa proliferação cancerígena de que fala o autor, que, ao contrário da capitalista, tem sentido no delírio político das massas que se assemelha a um delírio de morte. O bolsonarismo que sai vencedor nas urnas do primeiro turno é a proximidade de uma catástrofe mortal no Brasil, produto dessa autoalienação de cidadãos que caminha na construção de sua própria aniquilação. Ela diz que parte da sociedade quer, inconscientemente, morrer. O que vale para a crítica de Walter Benjamin do fascismo e que vale para Han para o capitalismo, vale também para o bolsonarismo. Para Lula vencer as eleições é preciso, mais uma vez, enfrentar o desafio de confrontar no debate político a destrutividade do bolsonarismo, esse “bacilo contagioso e mortal” como descreve Han, nascido na extrema direita e que se caracteriza por crescimento e autodestruição de tudo e de todos. Se para Arthur Scnitzler, diz Han, o capitalismo é comparável a um bacilo que traz uma doença mortal, da mesma forma o bolsonarismo é comparável a uma doença para um todo maior, a nossa sociedade, que ele, como simulação de bacilo, procura aniquilar.
A esquerda sai profundamente pessimista das eleições. Não porque deixou de eleger políticos sérios, honestos, com trajetória como Olívio Dutra e tantos outros que ficaram no caminho do primeiro turno. Ela descobre a face mais cruel da sociedade brasileira, a que é capaz de eleger aqueles que tem como objetivo destruir tudo o que resta de direitos trabalhistas, sociais, humanos, ambientais etc. Políticos que seguem pela cartilha da privatização a qualquer custo, que defendem a redução das conquistas da Constituição de 1988, para criarem as condições de êxtase do capital. Que significa a eleição de Eduardo Pazzuelo, ex-ministro da saúde que ajudou a destruir as políticas de combate a pandemia? Que significa a eleição de Marcos Pontes, que ajudou a destruir o que restava de ciência e tecnologia em nosso país ao aceitar, sem pestanejar, redução de verbas para seu ministério? Que significa a eleição de Ricardo Salles, que ajudou a destruir o meio ambiente e ficou marcado pela frase “deixar a boiada passar”? A sociedade, ou parte dela, diz à esquerda, com a eleição desses representantes, que quer mais do mesmo, que está conforme com a política que vem sendo desenvolvida em nosso país.
Por quê? A resposta deve ser procurada no âmago da psicanálise. Da mesma forma que diz Freud em O mal-estar na cultura, de que o ser humano é essa “besta selvagem a quem é estranha a proteção da própria espécie”, da mesma forma nossas classes dominantes são compostas por brasileiros que, nessa eleição, ajudaram a eleger aqueles políticos cujos objetivo são destruir o país como nação, pois é isso que faz sempre o capital. Não foi assim com a catástrofe das minas da cidade de Mariana? Não é isso que faz o trabalho por plataforma, ou a uberização do trabalho? É sempre mais e mais exploração da mão de obra e da natureza. Surpreende a esquerda reconhecer que uma parte importante de cidadãos é dominada pelo impulso bolsonarista, esse impulso político para a morte que guia a inclinação agressiva de cidadãos e que é encarnado no gesto da “arminha”, seu ícone de poder. E a arma mata. Parafraseando Freud, o bolsonarismo representa a forma política na qual os cidadãos assumem a condição de besta selvagem, de podem viver sua agressividade contra tudo e contra todos. Inclusive a si mesmos. Mas essa destruição só interessa ao capital, eis a questão.
Por essa razão, da mesma forma que Han associa o capitalismo ao impulso de morte de Freud, é possível associar o bolsonarismo também. O que a esquerda faz é reagir às forças destrutivas do bolsonarismo, daí seu antibolsonarismo. Entretanto, o resultado das eleições diz para a esquerda que ela está perdendo essa luta. Por quê? Han discute se a aplicação do impulso de morte de Freud é apropriado para explicar o processo destrutivo do capitalismo porque sua noção de impulso é puramente biológica. O impulso de morte é, no vivo, produto de uma tensão da matéria inanimada na viva, reconhecendo que “a meta de toda vida é a morte”. Han chega a citar o impulso de poder como derivado do impulso de vida, ainda que parcial, já que “se destina somente a assegurar o próprio caminho de morte do organismo. Todo organismo quer morrer apenas de seu modo”, finaliza.
Essa tese encontra eco no pensamento de Jonnefer Barbosa, em sua obra Sociedades do Desaparecimento (N 1 Edições). Segundo Barbosa, inspirado em Walter Benjamin, o desparecimento vem sendo perpetrado como governamentalidade contemporânea. Da submissão dos corpos ao poder soberano da vida e morte do absolutismo à biografia das vítimas sociais da atualidade (todos os pobres, mas também negros, LGBQIA+, etc.), para o capitalismo, como na política de direita, sempre se trata do apagamento de vestígios de lutas, e daí a importância para o autor da necessidade de construção de uma história dos vencidos. Seria, com o bolsonarismo, o Brasil a mais nova sociedade do desaparecimento, como um dia foram os armênios massacrados pela Turquia (antigo império otomano?), naquele que foi o primeiro genocídio humano do século XX? Seria a ascensão do bolsonarismo o último genocídio político do século XXI, como foram um dia o dos negros e indígenas no país? Afinal, não é preciso morrer fisicamente, diz Virilio, basta que morramos simbolicamente para estarmos mortos em vida. Nestas eleições, fez-se jargão comum que, politicamente, Rio de Janeiro e São Paulo teriam se aniquilado nestas eleições. Não é exatamente o mesmo?
A ideia de impulso de morte fascina porque explica o impulso de destruição que trabalha no interior dos indivíduos para sua dissolução, exatamente como funciona o bolsonarismo. Sabemos que foram as atitudes do presidente e de membros de sua equipe foram responsáveis por inúmeras mortes, seja através das políticas de negação ao uso de vacinas à recusa de sua compra, mas mesmo assim, mesmo com inúmeras cenas de seu presidente zombando de mortos, uma parcela considerável da sociedade prefere as esquecer e assumir para si mesmo o papel de autodestruição ativa.
Ao eleger políticos da base bolsonarista indiferentes às principais questões que afetam os cidadãos, vê-se que parte da sociedade brasileira se entregou à autoagressão. Para onde foi parar a solidariedade que deve o cidadão partilhar com todos os outros cidadãos? Existe aí, talvez, uma diferença do pensamento de Freud como apontado por Han, pois, se o impulso de morte, na condição de vontade de todo o ser vivo voltar ao estado inanimado não explica o gozo narcísico da violência sádica, ele o explica na vontade dos cidadãos de elegerem lideranças conservadoras.
Estamos nos tornando devido ao bolsonarismo uma nação de perversos. O que coage eleitores a votarem em políticos que decididamente irão legislar contra seus interesses? O fato de que o bolsonarismo, diferente do capitalismo que está baseado na negação da morte, está baseado na sua afirmação. É essa a fonte da angústia da esquerda neste final do primeiro turno das eleições, reconhecer que parte dos cidadãos com os quais ela conta com o voto alimenta-se não do impulso de vida, mas de morte. É significativo que uma das imagens associadas ao bolsonarismo seja justamente a do comportamento do seu presidente durante a pandemia, que não foi explorada suficientemente pela esquerda. A esquerda levou tempo para atacar o bolsonarismo naquilo que era vital, o seu desejo de morte, deixando a direita, a estratégia inconsciente de seu recalque coletivo, de fazer esquecer.
No governo Jair Bolsonaro, os moribundos foram invisibilizados. A morte esteve presente no dia a dia dos vivos: basta ver a cena de pobres postulando os restos de comida nos armazéns. Essa visão da miséria que só o bolsonarismo produziu, não pode desaparecer do horizonte político no segundo turno. Vivemos um país onde o sanatório mental desapareceu porque a loucura se tornou a nova normalidade. Se não somos capazes de ver as vítimas do período eleitoral que se encerra é porque a sociedade está se transformando nesse cadáver de si mesmo. Se recalcamos a vida em morte, se aceitamos que sobrevivemos apenas em vida, é porque os cidadãos, de agora em diante, passam a serem esses novos mortos-vivos da nação. É preciso mais uma vez criticar essa riqueza acumulada por poucos às custas de muitos, é preciso reconhecer que a pobreza que pede esmola nas sinaleiras de nossas grandes avenidas é da mesma natureza da morte, que ela cria necrópoles na política, que ela cria espaços antissépticos da morte na eleição, sob o aspecto bem vivo de erguer a bandeira do país, outro simbólico perversamente ressignificado.
O bolsonarismo alienou de si mesmos os cidadãos, usou do dataismo e a inteligência social das redes sociais a seu favor, manipulou as emoções no campo da política, transformou a consciência política advinda da Constituição de 1988 em maquinação de redes de whatsapp. A esquerda deixou escapar uma vitória maior por entre os dedos no primeiro turno. Isso não pode se repetir no segundo. Por isso, a charge de Jean Galvão, publicada na Folha de São Paulo de onde, da tumba, um morto pede a um vivo que leve o título eleitoral tem sentido pois “apenas os mortos se lembram de tudo”, diz Han. E foram 686 mil mortos. Se esquecemos os milhares de mortos a mais que o bolsonarismo ajudou a enterrar, é porque estamos enterrando a nós mesmos, os vivos, na esperança da sobrevivência sob a falsa promessa bolsonarista. É disto que se trata o segundo turno das eleições.
*Jorge Barcellos é Doutor em Educação/UFRGS, autor de O êxtase neoliberal (Editora Clube dos Autores)