É possível que quem esteja lendo este texto já tenha ouvido falar no Conselho Municipal de Desenvolvimento Urbano Ambiental, vulgo CMDUA para os mais íntimos, mas grande parte da população de Porto Alegre desconhece sua existência e utilidade. E isso é uma lástima, porque ele seria uma peça fundamental no contexto da democracia participativa. Tanto seria, que há um movimento bem articulado para neutralizá-lo.
A origem desse conselho está no Plano Diretor, uma lei que determina diretrizes para o desenvolvimento urbano. Isso, uma lei! Sendo uma lei, tem que ser seguida. A ideia era assegurar que a população exercesse seu direito à participação na construção da cidade, especialmente do ponto de vista do interesse público.
Assim, o Plano Diretor dá poderes e estabelece que esse conselho seja composto pelo poder público (representantes do município), por entidades da sociedade civil (como a universidade, sindicatos ligados à construção, institutos de profissionais que tenham ligação com o assunto) e oito moradores, representando cada uma das Regiões de Gestão e Planejamento (RPs) de Porto Alegre, concretizando a participação direta na gestão urbana, como prevê a Constituição Federal.
Pois bem, voltando aos fatos, está em curso a eleição destes representantes das RPs, como resultado de uma ação popular que teve decisão judicial obrigando o poder público a realizar o pleito para a reconstituição do conselho, cujo mandato já se estendia por mais de cinco anos, quando o normal é dois. Claro, teve a pandemia, mas a vacina chegou à cidade em meados de janeiro de 2021!
O relato que se segue é de alguém que está acompanhando pelo avesso esse processo, há muitos anos como “delegada” (morador que participa de um fórum de discussão em sua região) e recentemente como candidata suplente da RP6. E o que tenho testemunhado é um desmonte programado dessas estruturas participativas, iniciado em 2018.
Porto Alegre era reconhecida internacionalmente pelo orçamento participativo (OP) e exercício de gestão urbana democrática. Mas, há anos, a realidade não é mais essa. O OP perdeu muito de suas características, impactando em seu desempenho e efetividade. Se o OP sofreu esse baque, é fácil imaginar o quanto tem sido fragilizada a participação social, especialmente no que diz respeito à transformação da cidade.
Assim, neutralizar a democrática capacidade de decisão da população, tem sido um empenho muito grande do poder público municipal. Como exemplo, algumas declarações do atual prefeito: “Lá (no conselho) tem representantes do governo e da sociedade. Dois do governo tinham votado contra. Eu disse a eles que é muito singelo: ou vocês reconsideram, ou vou trocar vocês — disse o prefeito Sebastião Melo” (DIÁRIO GAÚCHO, 2023) e “Se conselhos fossem deliberativos, não precisava eleição para prefeito. Se depender da minha vontade, quero mandar lei pra Câmara pra tirar esse conceito deliberativo. Conselho tem que opinar. Quem tem que decidir é a Câmara e o prefeito de Porto Alegre.” (REUNIÃO ORDINÁRIA DO COMAM, 2021).
Não é difícil imaginar que diminuir a capacidade de decisão popular, no caso do CMDUA, é uma forma de controlar o que pode – ou não – ser construído e como, assim como quem pode construir, limitando a gestão democrática da cidade. A estratégia iniciou-se com a alteração de regras para as eleições dos conselheiros das regiões em vários pontos, a começar pelo fato que entidades não poderiam mais candidatar-se como delegados ao fórum regional e a escolha desses passou da liberdade do eleitor indicar quantas pessoas quisesse, para a limitação a apenas um. Importante dizer que os delegados constituem um fórum por região, onde o conselheiro que a representa traz (ou deveria trazer) os processos de licenciamento de interesse e/ou impacto, para debater com a comunidade. Por isso, quanto mais pessoas, mais debate, mais participação.
Na votação em curso, como eu vi acontecer nas duas últimas eleições para a RP6, uma das chapas reproduziu o voto a cabresto: ônibus e vans carregando pessoas instruídas a votar naquela chapa. Gente saindo desses veículos com comprovantes de endereço já preenchidos, para justificar ausência de conta em seu nome, talvez por não serem de um bairro pertencente à região, e gente que tinha cópia eletrônica de conta comprovando a residência, que não foi aceita.
Eu, componente de uma das chapas, fui convidada a me retirar do local de votação, impedida de fiscalizar a apuração, enquanto todos os participantes da chapa contrária nunca deixaram de acompanhar todo o processo eleitoral. Vi vereadores e secretários municipais em conversas animadas com o candidato à reeleição da minha região, o mesmo que jamais trouxe um processo para ser debatido com a comunidade.
Com esses anos de experiência, acompanhando o processo e funcionamento do CMDUA, a partir da dinâmica da RP6, posso dizer que tínhamos um fórum atuante, com reuniões mensais e algumas extraordinárias, que trabalhou arduamente na definição dos bairros, fez um seminário sobre o Estudo de Impacto de Vizinhança (EIV), resultando em uma lei aprovada, que até hoje segue enterrada em alguma gaveta de poder público, esperando a regulamentação, que trouxe à discussão vários projetos de impacto para a região, exigindo contrapartidas e compensações, que seguiu denunciando a falta de consulta à comunidade, a partir de quando foi eleito o atual conselheiro, denúncia essa feita à administração pública e ao Ministério Público, e que, acima de tudo, nunca parou de lutar.
Mas nada disso é surpresa, quando sabemos que o atual plano diretor está sendo retalhado por leis feitas sob medida, para bairros como o Centro Histórico ou Quarto Distrito, liberando e flexibilizando o regime urbanístico e, dessa forma, não impondo limitações, no sentido de compatibilizar os grandes projetos urbanos com interesse público, meio ambiente, mudanças climáticas, qualidade de vida, com o direito de toda a população, e não apenas de parcelas dela, à cidade.
Acabo meu texto lembrando que este ano, em outubro, teremos outra eleição para escolher nossos representantes, e cujo resultado tem o potencial de nos restituir aquilo que nos tem sido sistematicamente negado: participar da produção de uma cidade para todos. Fiquemos atentos!
*Jacqueline Custódio é advogada, integrante da AMACAIS – Associação dos Amigos do Cais do Porto, Coletivo Cais Cultural Já e do spin Arquitetura e Urbanismo (POA Inquieta)
Foto da Capa: Alex Rocha-PMPA