Algumas vezes as circunstâncias da vida própria e do entorno geográfico, virtual e simbólico, nos fazem sentir o ar mais pesado. Ainda sabemos que respiramos, está tudo bem, mas a impressão é de uma umidade pegajosa e insistente que desarticula os ossos e deixa os músculos mais flácidos.
É uma sensação estranha que, no melhor dos casos, se dissipa com o sol, depois que conseguimos arejar as cobertas e sacudir os lençóis com ímpeto. Após o banho caprichado e o café recém-passado, 90 graus, pode ser que algumas melancolias sucumbam à força de mais um dia. O desafio é encontrar uma energia livre circulante, pegar carona em uma cauda de cometa qualquer. Levantar, sacudir a poeira e dar a volta, nem que seja por baixo, não importa. Em momentos como este, se mexer, se espreguiçar e antecipar a análise, fica parecendo o ato mais revolucionário. Pode até ser.
A sociedade capitalista nos insta a crer que somos portadores de uma incompetência incontornável e irreversível para estarmos bem, “apenas” com o que somos e possuímos. Pouquíssimos bens de consumo, atividades ou estilo de vida estão pensados para nos retirar dessa hipnose; antes o contrário. Cada nova coisa, cada nova adição, pede outra ainda mais nova. Até aqui zero novidades. O mesmo se passa com a informação e com a desinformação sistemáticas, porque estas também estão para consumo rápido, para confundir enquanto pensamos que nos tornamos mais interessantes, inteligentes e solidários. Serve para sabermos que sim, vamos mesmo nos ferrar, não tem jeito. Contudo, se consumimos informação sistemática é para estarmos com o orgulho intacto por estarmos sabendo, por pertencer ao time que diz: Viu? Te avisei. Parece uma grande coisa. Parece.
Boa parte dos problemas pode estar neste afã de querer ser tão interessante. Ailton Krenak traz algumas provocações com as quais é possível pensar a respeito desses momentos de respiração duvidosa. “Quando você sentir que o céu está ficando muito baixo, é só empurrá-lo e respirar. (…) Por que nos causa desconforto a sensação de estar caindo? A gente não fez outra coisa nos últimos tempos senão despencar. (…) Há centenas de narrativas de povos que estão vivos, contam histórias, cantam, viajam, conversam e nos ensinam mais do que aprendemos nessa humanidade. Nós não somos as únicas pessoas interessantes no mundo…” [1]Ainda bem.
Fazemos de conta que somos assim tão interessantes e alimentamos o nosso progressismo condescendente. Um tanto por vaidade, mas, também, porque ainda queremos ser os escolhidos, os ditos civilizados e alertados de plantão. Essa é a agenda do cidadão médio que pensa que luta pelos povos originários, que pensa que compreende a favela, que pensa, que pensa e pouco atua em consequência, porque uma coisa é a performance outra coisa é a essência. Não julgo, estamos nisso.
A experiência das pessoas em diferentes lugares do mundo se projeta na mercadoria, significando que ela é tudo o que está fora de nós. Essa tragédia que agora atinge a todos é adiada em alguns lugares, em algumas situações regionais nas quais a política – o poder público, a escolha política – compõe espaços de segurança temporária…[2]
Agora que sabemos que o fim do mundo é adiável para alguns eleitos, nossas escolhas progressistas são realmente postas à prova. O que vamos fazer com cidades como Eldorado do Sul e Roca Sales, que já não são espaços de segurança temporária? Em que bases se reconstruirá o estado do RS? Como não terceirizar o desastre, enquanto apontamos o dedo inclemente? Como exercer o voto de posse de novas experiências urbanas e naturais? Resumindo, como continuamos a nos importar? É o mesmo respirar sozinho?
[1] Krenak, Aílton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019, pp. 28-31.
[2] Ibid., p. 45.
Foto da Capa: Freepik / Gerada por IA
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