Meus avós maternos estudaram em escola rural até o 3º ano primário. No decorrer de suas vidas, por meio de seu trabalho, tiveram diversos negócios para sustentar os cinco filhos. Ele foi caixeiro viajante, depois tiveram uma torrefadora de café, o restaurante na rodoviária de Tapes, uma chácara onde vendiam frutas, leite, milho, feijão, até que finalmente se aposentaram à beira da Lagoa dos Patos.
Já meus avós paternos não tiveram educação formal. Ao longo de toda sua vida, moraram e tiveram uma venda em Potreiro Grande, hoje localizado em Cerro Grande do Sul, de onde tiraram o sustento para a família de cinco filhos. Nela comercializavam desde arroz e tecidos até fumo em rolo. Ali também era o bar da comunidade. Lembro do vô apartando brigas, mediando conflitos, a relho!
Em comum, meus avós tinham a vergonha de mal escrever as letras e de fazer as contas de cabeça, e tudo era difícil de colocar no papel. E dessa história, aprendi com eles que ninguém é melhor do que ninguém, pois as pessoas valem pelo seu caráter e não pela sua aparência ou dinheiro. A eles, minha gratidão por hoje estar aqui.
Imaginando
Hoje, com a experiência de quem atua com a população de rua desde 2016, fico a me perguntar qual seria o destino dos meus avós caso quisessem tentar a vida na Capital, mesmo com todo seu conhecimento, sabedoria e vontade de trabalhar. Minha resposta a essa pergunta, infelizmente, é a de que eles não teriam lugar a não ser a rua. O mundo não permitiria que sua contribuição fosse feita, porque seriam considerados inúteis, incapazes com seus meros 3º ano primário, sem rede de proteção e contatos e seus dedos calejados pela enxada.
Faz de conta, mas com muita gente é assim
Talvez, por causa do frio da noite, na tentativa de se aquecer, tomariam cachaça e acabariam, e com a repetição, se tornassem alcoolistas. Sem ter banheiros públicos disponíveis, nem quem oferecesse algum para os “mendigos sujos”, precisariam fazer suas necessidades pelas calçadas e praças. Com fome, iriam juntar restos pelo lixo ou pedir para desconhecidos pelas ruas, em bares e restaurantes. Quem sabe, seriam vítimas da violência do próprio Estado, que faz remoções recorrentes, retirando pertences, inclusive documentos pessoais, a pedido dos moradores da cidade, pois sua existência incomodaria, sujaria a vizinhança.
O diferente também pode ser muito parecido
Essa reflexão e a minha convivência com pessoas que estão na rua ou que já tiveram passagem por ela me trouxeram a certeza de que o que nos parece muito diferente pode ser muito parecido conosco. Na oportunidade de diálogo com quem está pelas ruas, descobri amigos e amigas, gente que admiro e com quem aprendo cada vez que encontro. Compreendi que o ser invisível da calçada pode ter uma história de vida e ensinamentos que, se a minha curiosidade não for maior do que o meu medo, perderei a oportunidade de saber, aprender e levar pra minha vida.
Costumamos rotular pessoas pela aparência, pelo jeito como falam, pela forma com que olham, o que comem, como riem, etc. Com a população de rua, acontece que é comum rotulá-la como vagabunda, drogada, bandida. E provavelmente entre ela há quem seja mesmo. E, por acaso, entre quem está fora da rua, não existe quem seja vagabundo, drogado e bandido? Mas são eles a maioria? Não, com certeza.
Encontro de causas e de faltas
Encontram-se nas ruas as consequências da falta de muitas políticas públicas. A dificuldade em conseguir emprego gera a impossibilidade para pagar as contas e o aluguel, que leva a pessoa ou até a família para a rua. Faltou política pública de educação e de geração de emprego. A perda da casa, seja porque foi despejada pelo tráfico ou porque perdeu na enchente, empurrou para a rua. Faltou política de segurança pública e política de moradia. A separação do casal, a briga entre pais e filhos, a drogadição, o transtorno mental provocam a ida pra rua. Faltou política de saúde mental. E aqui temos algumas causas e histórias que se escutam pelas ruas.
Varre, varre vassourinha
Por isso, remover pessoas de um lado para outro, limpar ruas, não resolverá os problemas sociais que precisamos enfrentar. As pessoas que estão nas ruas são representantes da nossa falha como sociedade, da nossa desigualdade, do nosso empobrecimento como humanidade.
Tempos atrás, escutei de uma autoridade estadual que os gaúchos apontaram, entre várias questões da área da assistência social, a situação da população de rua como a mais preocupante. Seria muito positivo se essa preocupação fosse encarada no sentido de resolver as causas que levam as pessoas para a rua e não apenas em tratar as consequências, carregando-as de um lado para outro, enxugando gelo, como hoje acontece.
Voltando pra história
Se meus avós tivessem migrado para Porto Alegre, tomara tivessem contado com a sorte de encontrar alguma das apenas cinco equipes que têm a missão de atender as quase cinco mil pessoas em situação de rua em Porto Alegre, o que é um número estimado, pois são as que estão cadastradas no CADÚNICO, considerando que há muitos não cadastrados, parte imigrantes e parte migrantes de outros estados ou municípios, vindos especialmente após as enchentes. Então, essa equipe, que é multidisciplinar, iria acompanhá-los na rua (pois no geral os espaços públicos já estão ocupados), articular e encaminhar (quando e se surgirem vagas disponíveis) para espaços que atendem à população de rua*:
Muita coisa, todas insuficientes
Centro POP – O Centro de Referência Especializado para a População em Situação de Rua (POP) oferece ajuda social para adultos, idosos e famílias que estão vivendo nas ruas. A equipe trabalha de forma individual e em grupo durante o dia, ajudando essas pessoas a encontrar maneiras de lidar com a situação e a se conectar com outros serviços disponíveis.
Em Porto Alegre, existem três Centros Pop: dois no centro da cidade e um na região Humaitá/Navegantes. Além disso, há um Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculo (SCFV) para pessoas em situação de rua, que são encaminhadas pelas equipes da FASC. Eles funcionam das 8h às 17h.
Moradia – Porto Alegre oferecia cerca de 1.500 vagas entre abrigos, albergues, hospedagem social, auxílio moradia. Porém, após as 11 mortes ocorridas no incêndio da Pousada Garoa e o cancelamento do contrato com a empresa, esse número diminuiu. De todas as experiências já experimentadas com relação ao resgate de pessoas de uma situação de rua, é sabido por estudos que o Moradia Primeiro, ou Housing First, é a mais bem-sucedida. Mas ela requer uma política de Estado, não de governo. Teríamos coragem?
Alimentação – A oferta de alimentação está conectada aos tipos de serviços citados acima, tanto no Centro POP (lanche) quanto nos Abrigos (todas as refeições) e Albergues (café da manhã e jantar). Há também os Restaurantes Populares espalhados pela cidade, mas apenas aos que estão cadastrados no espaço pelo CADÚNICO.
CREAS – O CREAS é um serviço público de Assistência Social que apoia famílias e pessoas que vivem nas ruas, incluindo crianças, adolescentes, adultos e idosos. Ele também ajuda adolescentes que estão cumprindo medidas socioeducativas, como trabalhos comunitários ou liberdade assistida.
SUS – O Sistema Único de Saúde é um serviço universal e de direito a qualquer cidadão brasileiro. Assim, valendo para as pessoas em situação de rua em qualquer ambiente, emergência, urgências, ambulatórios. Infelizmente, é sabido o preconceito e indisposição com que são tratados nesses ambientes onde a humanidade deveria ser condição básica.
Ataques, achaques e incompreensão
Triste saber que esse arcabouço de serviços, que é pequeno frente ao tamanho da nossa população de rua na Capital dos porto-alegrenses, sofre achaques de muitos que dizem querer as pessoas em situação de rua fora dela.
Recentemente ocorreu uma reunião no 4º Distrito de Porto Alegre, onde a pauta foi o Centro POP 3, uma unidade que é exemplo no atendimento da população de rua. Nela, na presença de autoridades municipais, a vizinhança questionou e solicitou a saída dele daquele território, justamente onde ele vem a ser mais do que necessário.
Quando se faz uma análise de localização para qualquer estabelecimento, esse processo envolve avaliar alguns fatores, entre eles o público-alvo, a oferta de outros serviços similares na mesma área e a acessibilidade. Assim, se você for escolher um local para um restaurante, por exemplo, vai procurar uma região onde sabe que há poucos serviços de alimentação e muita gente circulando no horário do almoço, com muitos escritórios e empresas ao redor. Certo?
O mesmo raciocínio serve para o Centro POP 3. Ele está instalado no bairro Navegantes. É único naquela região, onde temos uma grande população de rua, o serviço fica de fácil acesso para ela, e queremos que isso aconteça, pois ele torna mais fácil para as pessoas aderirem aos demais serviços, bem como para se obter o resgate da rua. E quem não quer isso?
Então, se queremos apoiar e resolver a causa da população de rua, em vez de reduzir e precarizar serviços, remover pessoas, limpar ruas, por que a gente não escolhe enfrentar as razões pelas quais essas pessoas saem de suas casas e tratar a raiz dos problemas? Lidar com a verdade em vez de ficar se enganando? É mais difícil. É mais demorado. Requer diálogo e construção. Mas nos trará resultados duradouros, humanos e justos. Imagino que, nesse futuro imaginário, meus avós receberiam uma oportunidade em Porto Alegre.
*Utilizei dados do Coletivo Passa e Repassa e da Prefeitura de Porto Alegre para descrição dos serviços ofertados à população de rua desta coluna.
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Foto da Capa: Fernando Frazão / Agência Brasil