No final de outubro, finalmente pudemos voltar a Porto Alegre, para uma visita longamente adiada pelas enchentes de maio e o fechamento do Aeroporto Salgado Filho. Éramos três pessoas, minha esposa, minha filha e eu. Cada um com sua respectiva mala.
Chamamos um carro de aplicativo, ressaltando que precisaria ter espaço para três pessoas e suas malas. Chegou em alguns minutos. Era um carro novo e encostou no canteiro sem fazer ruído. Foi quando me dei conta de que era um veículo elétrico. Por incrível que pareça, para alguém que defende a eletrificação da frota de veículos como a melhor alternativa para reduzir a emissão de gases de efeito estufa pelo setor de transportes, foi minha primeira experiência com um carro deste tipo.
Era um veículo novo, confortável, com bom espaço interno e muita tecnologia embarcada. E de fato muito silencioso. Mas o que mais me surpreendeu foi notar como sua performance era equivalente à de um carro a combustão interna.
Dias depois, em outra corrida, veio o mesmo tipo de veículo. Dessa vez, conversei mais tempo com o motorista, que me disse que estava muito satisfeito com o carro, que estava gastando sete vezes (!) menos com combustível (energia no caso), etc. Mas o que me pareceu mais notável mesmo foi quando me contou que fazia frequentes viagens para Santa Catarina. Ou seja, viagens com centenas de quilômetros em que os clientes não querem saber de atrasos.
Essas experiências, e um olhar mais amplo para o que está acontecendo no mundo, me convenceram de que, não há mais dúvida, os carros elétricos estão se tornando uma realidade. Não só em países ricos, não só para pessoas com muito dinheiro, mas como algo que, se ainda não está, em breve estará ao alcance de todos.
De uma curiosidade a uma opção viável
Embora aqui no Brasil ainda sejam poucos, os carros elétricos não são mais uma opção de nicho para um certo tipo de consumidor. Basta vermos o sucesso da Tesla nos Estados Unidos, que já produz quase 2 milhões de carros por ano. E dos carros elétricos na Europa, onde já rodam mais de 4,5 milhões de veículos. E de como as empresas chinesas estão se movendo para inundar o mundo, inclusive o Brasil, de carros elétricos. É uma nova realidade. Se um carro elétrico faz sentido econômico para um motorista de aplicativo, que roda dezenas ou mesmo centenas de quilômetros por dia, então o fará para qualquer um de nós.
Atualmente, esses veículos ainda são relativamente caros, pois a maioria das vendas é de veículos novos. Mas, nesse contexto, seus preços já são competitivos com carros a combustão equivalentes. E os preços vêm caindo rapidamente. O preço das baterias, que são o componente de maior custo dos veículos elétricos, caiu 90% desde 2008 (de cerca de 600 mil reais em 2008 para 60 mil atualmente). E a expectativa é de que vá cair mais 50% até 2026.
Os carros elétricos, além disso, são de manutenção muito mais simples. Um carro a combustão tem cerca de 400 peças móveis. Um carro elétrico 50. Menos peças significam menor possibilidade de o veículo apresentar defeitos e, portanto, maior confiabilidade e durabilidade. No momento, os custos de manutenção ainda são maiores, devido à mão de obra mais especializada, o que também tende a cair com a ampliação do mercado.
Na medida em que mais veículos novos forem vendidos e os mais antigos sejam revendidos, junto com a redução no custo das baterias e demais componentes, a tendência é que os preços dos carros elétricos fiquem mais baixos do que os dos carros a combustão. Quando esse momento chegar, não haverá mais desculpa para continuarmos usando veículos poluidores se tivermos uma alternativa mais limpa e mais barata.
Pois a redução da poluição urbana é mais uma vantagem da opção por veículos elétricos. Além da emissão de gases de efeito estufa, os veículos a combustão emitem diversos tipos de poluentes.
Todos prejudiciais à saúde, sendo alguns cancerígenos. Devemos lembrar que a poluição do ar mata mais de 8 milhões de pessoas no mundo todos os anos. Ainda que indústrias, inclusive as automotivas, tenham investido em filtros e outros equipamentos para reduzir as emissões, o número de mortes continua subindo devido, principalmente, ao aumento das populações das áreas metropolitanas.
Além dos carros, todos os outros veículos urbanos podem ser eletrificados. A maior parte da frota de ônibus e caminhões urbanos não roda o dia inteiro. Portanto, com o aumento da autonomia das baterias (e no artigo anterior eu mencionei que há previsão de que fiquem cinco vezes mais potentes daqui a pouco anos), esses veículos podem rodar durante todo o dia e serem recarregados à noite. Motos elétricas também nos livrariam da tortura do ruído dos escapamentos abertos das motos convencionais, nos perturbando dia e noite.
Processo Lento
Apesar da viabilidade técnica e econômica, a substituição total da frota de veículos vai levar tempo. Existem cerca de 1 bilhão de automóveis e camionetes rodando no mundo. E todos os anos são acrescentados 20 milhões de veículos. A maioria ainda usa gasolina ou diesel. Um automóvel tem uma vida útil média de 15 anos. Ou seja, os veículos produzidos agora devem rodar até, pelo menos, 2039.
Com base em dados referentes aos Estados Unidos, estima-se que, para eletrificar toda a frota de veículos leves americana até 2050, as vendas dos veículos elétricos teriam que representar até lá praticamente 100% delas. Em 2023, elas representaram 7%. Em 2024, a participação de veículos elétricos e híbridos já chega a 19%. Ainda assim, mantendo-se a tendência atual, levará dezenas de anos para que a frota americana seja toda eletrificada. E o que dizer do resto do mundo? Países como a Índia, Indonésia ou Paquistão (para citar alguns dos mais populosos) ou continentes como a África e a América Latina? Muito mais.
No entanto, podemos ser mais ousados. Na União Europeia, vários países prometem banir a fabricação (e importação) de carros a gasolina e a diesel até 2030. E na China, os veículos elétricos já representam metade das vendas. E devem dominar totalmente o mercado chinês até 2030. A revolução já começou. Agora precisa se espalhar pelo mundo.
Ou seja, com os carros elétricos se mostrando cada vez mais econômicos que os carros à combustão interna, basta os governos darem um “empurrãozinho”, para que a substituição seja mais rápida. Por exemplo, se a maior parte dos trilhões de dólares (detalhes mais adiante) que a indústria de combustíveis fósseis recebe atualmente fosse revertida para geração renovável e veículos elétricos, as perspectivas mudariam muito.
Biocombustíveis
Você talvez esteja se perguntando se os biocombustíveis não seriam uma alternativa à eletrificação. Afinal, o etanol, o biodiesel e o SAF (combustível sustentável para a aviação na sigla em inglês) podem ser utilizados pelos mesmos motores já existentes (na maioria dos casos com pequenas modificações). Além de utilizarem a mesma rede de abastecimento que os motores a gasolina, diesel e querosene (de aviação).
A questão é complexa. E vou dedicar um artigo específico a isso. Mas o fato é que a produção, distribuição e uso destes combustíveis não são de fato carbono zero, ainda que sua “pegada” de carbono seja menor. Além disso, usam solos – grandes extensões – que poderiam ser mais úteis produzindo alimentos, os quais ficarão cada vez mais escassos no planeta em transformação. Mais sobre isso em breve!
Como acelerar a eletrificação da frota?
A primeira coisa a fazer é mudar a estrutura de incentivos. Não faz sentido os governos ainda subsidiarem a indústria de combustíveis fósseis, enquanto taxam energias renováveis e carros elétricos. No Brasil, 82% dos subsídios para a área de energia vão para combustíveis fósseis. Ou seja, de cada 5 reais de subsídios, 4 vão para combustíveis fósseis e apenas 1 para energias renováveis (os números reais são cerca de 82 bilhões e 18 bilhões de reais). O governo brasileiro aumentou a taxa de importação de painéis solares de 9,6% para 25% a partir de julho de 2025. Algo inconcebível para um país que se diz comprometido com a transição energética.
E o Brasil não está sozinho. Muitos outros países fazem a mesma coisa. No mundo, os subsídios para os combustíveis fósseis somam cerca de 7 trilhões de dólares, enquanto os incentivos a fontes renováveis não chegam a 1,5 trilhão. Se a estrutura de incentivos fosse ao menos inversa, teríamos energia mais barata e limpa o suficiente para sustentar toda a eletrificação da frota.
No que se refere aos veículos elétricos, em muitos países do mundo eles são isentos de taxação. No Brasil, a taxação de carros elétricos importados é de 18%. Em janeiro de 2025, a alíquota sobe para 25% e, em julho de 2026, para 35%.
Além disso, os carros elétricos estão incluídos no “Imposto do Pecado” (como as bebidas e os cigarros), que tem uma taxa de 26,5%. A justificativa (ridícula, convenhamos) seria a poluição causada pelas baterias de lítio. Algo que não apenas não aconteceu, como será facilmente resolvido com a reciclagem deste valioso material.
Em suma, apesar de todas as vantagens, não se vê no Brasil uma disposição real dos governos de incentivar a eletrificação da frota, provavelmente devido à pressão exercida pela indústria automobilística tradicional e a de combustíveis fósseis.
Nós podemos mudar isso
Governos, como eu já mencionei outras vezes, reagem à pressão da sociedade. A adoção de veículos elétricos faz todo o sentido em termos de redução do efeito estufa, redução da poluição (inclusive a sonora) nas cidades e, com a massificação do seu uso, custos menores e menos trabalho de manutenção.
Cabe a nós pressionarmos os governos para deixar de subsidiar a produção de veículos movidos à combustão, incentivar a produção de veículos elétricos, inclusive (por que não?) por empresas nacionais e assim avançarmos para uma nova era de transportes, com energia limpa e renovável.
Assim como exercer nosso poder como consumidores. Tão logo os preços se tornem mais atraentes, eu vou comprar um carro elétrico. E você?
¹Este é o terceiro artigo da série em que eu apresento soluções e estratégias para o enfrentamento da crise ambiental global. O livro “Planeta Hostil”, assim como uma série de colunas publicadas na Sler, apresenta uma visão abrangente dos desafios que a humanidade terá que enfrentar. O livro pode ser adquirido em livrarias físicas e online de todo o Brasil, no site da editora Matrix (www.matrixeditora.com.br) e em lojas online.
Observação final: para vídeos e textos adicionais, confira também meu Instagram @marcomoraesciencia.
Marco Moraes é geólogo formado pela Universidade Federal da Bahia (UFBA/UFRGS) e Ph.D. pela Universidade de Wyoming (EUA). Construiu a maior parte de sua carreira profissional, de mais de 37 anos, como pesquisador do Centro de Pesquisa da Petrobras (CENPES). Desde 2017, quando deixou a vida corporativa, se dedica a estudar os problemas do planeta. É autor do livro "Planeta Hostil", lançado em 2024, pela editora Matrix.
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Foto da Capa: BYD / Divulgação