Há quase um mês estamos vivendo em uma sucessão de dias e noites marcadas por incertezas e angústias. Elas vêm trazidas pelas chuvas de um maio que não quis nada com o tal “veranico” de outrora.
Fosse este um dos dias de antes, quem sabe esta coluna estaria fazendo apenas uma alusão à série original The land of the lost. Com gosto, eu relembraria a trilha sonora que nomeava Marshall, Will and Holly em sua aventura na outra dimensão, na pré-história. Até mesmo os bizarros lagartos sleestaks, a partir de um olhar infantil fascinado, poderiam me inspirar alguma sorte de amenidade traduzida em um texto sem vergonha de ser frívolo. No entanto, hoje não vai ser assim.
Passados alguns anos, quando já nem me lembrava da série e já não tinha mais medo do hipnótico ruído dos sleestaks, descobri que o bairro no qual nasci e vivi até meus 17 tinha, justamente, esse apelido: elo perdido. Falo do bairro porto-alegrense Humaitá, na zona norte da cidade. Meus pais foram da geração que pôde financiar um apartamento em 1500 anos. Foi assim que puderam adquirir esse imóvel que esteve conosco até quase meus 30. Éramos pobres, sem plus, mas com amigos de condomínio, um parque lindo para andar de bicicleta e uma urbanização interessante, embora descolada da cidade.
Esse tipo de designação – elo perdido – deixa bem nítida a relação do bairro periférico com a cidade. Subjetivamente, essa distância ficava evidente quando meu ônibus passava por baixo da estação de trem Farrapos, quase como se fosse o cruzar de um portal. A partir daí, iniciava-se um percurso obrigatório e revelador pela Vila Pirulito, na avenida A.J. Renner. No trajeto, a presença de um indisfarçável mal cheiro, típico da ausência de saneamento básico, marcava a indiscutível indiferença do poder público com a região. Seguindo direto por essa avenida se chegava à Vila Farrapos, com suas casas humildes, porém mais estruturadas do que no caso anterior. Após a Vila Pirulito, dobrando à direita, como quem quisesse ir até o bairro Anchieta ou à Canoas, estava o bairro Humaitá e seus blocos de apartamentos tão característicos, tão apartados.
É muito curioso sair do bairro e parte do bairro não sair da gente. Isso dá margem para vários fenômenos interessantes. Lembro-me que, quando mais uma vez recusei uma vida com carro e quis morar perto do consultório, no Moinhos, encontrei um edifício antigo super simpático. Advinha o nome? Humaitá. Aí foi só amor. Anos antes, passeando no Rio, ah, que lugar legal, tô perdida, onde é que eu tô? …Aqui é Humaitá.
Em tupi-guarani, pedra preta. Humaitá também nomeia uma batalha sangrenta da guerra do Paraguai. E agora, com a crise climática, as chuvas e o já recorrente descaso da prefeitura, o bairro porto-alegrense Humaitá e arredores – inundados há quase um mês! – voltam a lutar pela visibilidade. Nessa luta, há vozes que precisam ser escutadas, como a da moradora arquiteta e urbanista Renata Santiago Ramos, cujo texto/depoimento é um verdadeiro testemunho e apelo a um olhar menos sectário e elitista sobre essa população cujas vidas estão pausadas na água.
Faz tempo que não tem graça essa história de elo perdido. É o mínimo esperar que, ao menos para as políticas públicas, não existam lugares de segunda categoria.
Foto da Capa: Bairro Humaitá, Porto Alegre – Reprodução do Youtube
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