Vou pedir desculpas aos leitores que chegam aqui para ler sobre arquitetura e cidade. É que me dei conta que entre esta coluna e a próxima (07.11) teremos eleições gerais e a questão da continuidade da presidência é importante demais para ser deixada de lado. Se não fizermos nada, agora, perderemos a grande chance de salvar a democracia. Estamos diante de uma encruzilhada histórica como nunca houve. O risco de rumarmos para o obscurantismo, para a ditadura, pelo voto, é grande, apesar das pesquisas mostrarem, felizmente, uma perspectiva de mudança. Por isso, não posso me furtar de clamar para que usemos nosso voto para afastar esse perigo. A Alemanha elegeu Hitler em 1932 e se arrependeu amargamente. Já não se trata de optar, na próxima eleição, entre liberalismo ou socialismo, a encruzilhada é entre democracia e ditadura. O próximo governo será, necessariamente, de transição, de volta ao debate do melhor projeto de desenvolvimento para o Brasil.
Na eleição de 2018, o Brasil mudou de rumo – ou o perdeu. Elegemos um presidente que não se cansou de afrontar direta e diariamente os ideais de uma sociedade livre e democrática. Pior, passou quatro anos propugnando por uma sociedade armada, falando em extinguir esquerdistas, debochando dos mortos pela COVID, demonizando religiões africanas, pregando intolerância racial, religiosa e, ainda, conspirando contra o poder judiciário, a constituição e a democracia. Poderia prosseguir nessa lista de horrores, mas já é suficiente para poder imaginar o que acontecerá se ele tiver a oportunidade de seguir nessa lógica num segundo mandato. Um presidente controlando congresso, judiciário, polícia e milicianos, para se perpetuar no poder, é isso o que queremos?
Digo com todas as letras: não quero! Quero ter o prazer de voltar a sentar com meus amigos de esquerda ou direita para debater longamente política, economia, e o que mais nos interessar. Divergir faz bem, excita nossos cérebros em busca de respostas, alarga nosso pensamento e visão de mundo. Não somos todos iguais, cada um aprende e ensina o tempo todo. É salutar. Eu mesmo, voto na esquerda, mas não gosto de partido único, sou da esquerda libertária. Li Adam Smith e Marx. Aprendi com os dois, não demonizo ou endeuso nenhum deles. Fazem análises profundas das nossas maneiras de ser e viver em sociedade. Sou simpático às ideias de que a cooperação e a solidariedade são mais produtivas socialmente que o egoísmo individualista, tido, por muitos, como motor da sociedade. Não acredito nisso. Devo, portanto ser ameaçado de extinção pelo candidato que usa sua caneta Bic como arma de morte?
Quero seguir vivo para continuar a escrever sobre as cidades. Para mim, é um exercício de esperança, faz parte da minha vontade de contribuir para uma sociedade melhor. Há um pouco de utopia e de otimismo nessa coluna? Sim, mas sem utopia o futuro não acontece, pelo menos não no sentido que gostaríamos que acontecesse. A cidade que eu quero ver acontecer é a cidade democrática, com sentido de coletividade, de troca, tolerância, comunhão, festa, celebração da vida e do trabalho. Deixada aos interesses do mercado, conhecemos o resultado. Cidade não é acampamento de indivíduos ou grupos de interesse ou de luta de uns contra outros. Isso é rinque.
A cidade que eu desejo nunca aconteceu e nem vai acontecer? Não é bem assim. Exemplos fora do sistema capitalista existem muitos, mas para ser mais crível, vou ficar com o que li no livro de Charles Duff em Cidades do Atlântico Norte sobre a Amsterdam dos anos 1600, cidade berço do sistema econômico que nos organiza como sociedade. Não que tenha sido uma cidade utópica, sem conflitos e contradições. Mas ali, o domínio do comércio mundial, a riqueza propiciada pela formação das sociedades anônimas por ações em grande escala e, também, a arte de Rembrandt e Vermeer fizeram a República Holandesa viver seu chamado Século de Ouro. Entretanto, os burgueses, segundo Duff, “não deixaram de ser pessoas de classe média. Seu quadro de referência sempre foi a casa, não o palácio. Enquanto Luís XIV e seus rivais sonhavam com o poder mundial e curvavam as artes para servir aos seus propósitos, os holandeses estavam pavimentando uma república de formato diferente, sem rei, com uma nobreza fraca e uma tolerância para a diversidade religiosa”. Duff também nos diz sobre a vontade que os holandeses tinham de confiarem uns nos outros. Frase curiosa para nós que fazemos justamente o contrário, exercemos a desconfiança diariamente. E também nos conta sobre a tolerância religiosa, a organização do trabalho, e o rigor das normas urbanísticas e o reflexo disso tudo sobre a cidade. Também aprendemos que pela primeira vez na história as casas puderam ser apenas casas de moradia, sem abrigarem depósitos, armazéns e escritórios. Isso porque os comerciantes confiavam em seus conterrâneos e se permitiam guardar seus valores à distância. A cidade tolerante e confiável era boa para todos. Ricos e pobres moravam lado a lado, variando a quantidade de metros de fachada de cada um de acordo com suas posses.
Esse foi o modelo depois adotado por Londres. Muitos de nós estranhamos que as casas de muitos ricos e poderosos londrinos abrem suas portas diretamente para as calçadas. Mas é assim mesmo que eles vivem. Desconheço a existência, em seu perímetro urbano, de nada que lembre nossos condomínios murados como campos de concentração, nossos portões duplos copiados dos presídios e tantas outras características de um apartheid social.
Para continuar a escrever e trabalhar pela cidade igualitária, sustentável, caminhável e aprazível, é preciso, antes de mais nada, que a república seja democrática, que predomine a tolerância política, religiosa, sexual e tudo o mais que puder ser contemplado pela palavra diversidade. E, também, que se alcance a equanimidade de renda e de oportunidades. Aí viveremos na cidade sem medo, sem muros e sem armas. Entretanto, para prosseguir almejando cidades pautadas pelo convívio civilizado e democrático, é necessário acordar desse pesadelo, voltar à antiga situação da divergência amigável, do confronto de ideias sem ódio ou agressões. Civilizadamente. As eleições do dia 2 de outubro nos dão a oportunidade de acordarmos no dia 3 e gritar: acabou o pesadelo! Ciência, arte, educação, cultura e saúde vão voltar a disputar lugar nesse país!