O título desse texto toma a liberdade de epigrafar título de livro publicado originalmente na Itália, em 1996 (In cosa crede chi non crede), e traduzido para o português brasileiro com o título acima, em 2005. Tal livro é uma deliciosa coletânea de trocas de “cartas” entre o “crente” Carlo Maria Martini, elevado a Cardeal em 1983 pelo papa João Paulo II, e o “não-crente” Umberto Eco, intelectual de relevo da contemporaneidade mundial, que dispensa apresentações. O mote que ensejou o livro foi muito bem detectado (e nas cartas que se seguiram, devidamente desenvolvido) pelos autores do livro, nos seguintes termos: “Há uma noção de esperança (e de responsabilidade em relação ao amanhã) que pode ser comum a crentes e não-crentes? Ainda em que poderia basear-se?” Essa pergunta, feita na carta inaugural da coletânea por Umberto Eco, é justificada por este autor no sentido de que apenas aceitar a aproximação de um Apocalipse inevitável leva muitos a se instalarem “diante da televisão (sob proteção de nossas fortalezas eletrônicas)” e esperarem que alguém “(…) os divirta, enquanto as coisas seguiriam como estão. E ao Diabo os que virão.” O interlocutor crente Cardeal Carlo Maria Martini aceita o desafio da pergunta desencadeadora acima, mesmo admitindo a dificuldade da tarefa; ao mesmo tempo, o cardeal registra sua fé, sua esperança em termos da existência de “(…) um húmus profundo que crentes e não-crentes, pensantes e responsáveis, alcançam, sem que, no entanto, consigam dar-lhe um mesmo nome.” Mas Dom Carlo não se deixa abater por este obstáculo, por uma questio di nomine que paralise o debate face ao que ele considera “valores essenciais para a humanidade”, o que o leva a considerar que “ainda não é, portanto, o momento de deixar-se embriagar pela televisão, esperando o fim”, pois ainda haveria “(…) muito a fazer juntos.”
Esse diálogo fundador assume especial relevo no momento presente, em que Jorge Bergoglio, feito Papa Francisco, entra para a história justamente pelo tanto que promoveu em sua capacidade de dialogar e esperançar. Dialogar para além do proselitismo em circuito fechado dirigido aos iguais. O livro que deixou seu lugar em minha estante voltou a cumprir sua função graças à sua pertinência e atualidade – bastando somente acrescentar à aludida televisão do final do milênio passado a explosão da web, das redes sociais, da produção textual diversificada no paroxismo do bem/bom e do mal/ruim.
Francisco efetivamente falou urbi et orbi, para Roma e para o mundo, para todos e todas dispostos a pensar o Apocalipse não somente como mais uma distopia em algum streaming, mas como algo que nos institui e nos constitui, aqui e agora. Desde nossa “fossa” pessoal-existencial até genocídios em tempo real que nem sequer conseguem arranhar consciências. O suicídio, assistido e ética e coletivamente assumido, como baluarte dos avanços de um tempo em que a revolta para dentro inviabilizou, desfibrou, desossou a revolta para fora. Sem que haja aqui qualquer gesto ou aceno moralista de condenação àqueles e àquelas que dizem “basta” e encerram a própria caminhada. Direito inalienável. Francisco foi um defensor ferrenho desse basta – mas atravessado pela esperança, alternativa ao desespero, ao torpor das microtelas que entortam as colunas vertebrais e fabricam zumbis.
Francisco morreu com sapatos que lembram meus velhos Vulcabrás dos tempos de colégio – ao invés dos escarpins vermelhos Prada que usualmente compõem o modelito papal. Isso foi largamente comentado nas redes sociais, no contexto da simplicidade da tumba em que Francisco – apenas Francisco – pediu para ficar. Os sapatos pretos banais, gastos, apenas aludem a um jeito de ter estado no papado que honrou essa instituição. Sou daqueles que têm com o papado, justamente, uma relação de visceral desconfiança, para não dizer algo mais forte. Um papa na gestão de um Estado Eclesiástico, como o Vaticano, com um banco (!!!) e um acervo material incomensurável, sempre me pareceram um desses atentados à integridade das ideias entre si, abertura perpétua a um reductio ad absurdum capaz de danificar a integridade mental de qualquer criatura com um mínimo de honestidade intelectual. Martinho Lutero que o diga. Registro esse ponto aqui para sublinhar o pouco cabimento que eu, católico de criação e tradição, costumo conceder a essas instâncias eclesiásticas/estatais. Ainda assim, Francisco me falou, me comoveu, no sentido de me ter auxiliado a um movimento de razão e fé. E aqui voltamos ao mote de partida – pois fé não me parece algo restrito a crentes, senso estrito. Esperança e fé são justamente constituintes das famosas pontes pelas quais Francisco pelejou – substitutivamente a muros. Sim, Francisco nos ajudou a refundir a tristeza dos campos de extermínio das máquinas de guerra através do sorriso bem-humorado que tanto agrado e identificação provocou em nós, brasileiros. Através do gosto autêntico de ser gente e de estar entre gentes – estar no meio de nós, na linha do exemplo maior que ele, Francisco, buscou seguir.
Mas ele, Francisco, não foi uma unanimidade, e com isso escapou ao chicote rodrigueano (“toda unanimidade é burra”). Para uns, fez mudanças pela metade na Igreja; para outros, pouco contribuiu para uma alteração real no jogo de forças mundial produtor de guerras, mantenedor de desigualdade, opressor dos fracos e desvalidos. Houve até quem denunciasse certa postura alienada de apoio (fervoroso, até) de setores da esquerda a um papa que de esquerdista não tinha nada (sob reserva de análises desvairadas da extrema direita mundo afora). Aos que se alinham nesse rol de descontentes, fica o reconhecimento pela postura crítica, e a expectativa de que a crítica abra espaço à efetiva ação de cidadania. Os grandes personagens da cena histórica, justamente por serem grandes, oferecem ombros que os menores podem galgar, e de onde têm a possibilidade de enxergar um pouquinho mais longe – vida que segue.
Para concluir, imagino que Umberto Eco e Carlo Maria Martini, ambos já noutra dimensão, estejam cercando Francisco, recém-chegado, com uma proposta de edição a três, revista e ampliada do “Em que creem os que não creem”, com aposição de dois pontos a que se seguiria: “Elementos de resposta e novas perguntas para quem (ainda e sempre) comunga esperança e fé.”
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Foto da Capa: Reprodução do Instagram.