De vez em quando, topo aqui e ali com gente que reclama que vivemos na literatura do Estado um momento de estagnação (normalmente é alguém meio velho que nem eu). Fiquei pensando se será mesmo assim e resolvi escrever este pequeno ensaio.
Durante boa parte da segunda metade do século XX, pairava um consenso sobre alguns elementos gerais da literatura produzida no Rio Grande do Sul. Talvez o melhor sumário conceitual desse entendimento tenha sido feito pela professora Regina Zilberman em sua obra fundamental A literatura no Rio Grande do Sul, que identifica quatro aspectos distintivos, embora interconectados, da prosa produzida no Estado: 1) um sistema autônomo de representação e diálogo, no qual a atuação dos autores é restrita aos limites regionais e a leitura de suas obras se dá em um círculo restrito formado, com algumas exceções, pelo público local, 2) a persistência do regionalismo como temática e bandeira, 3) a predominância da mirada social e o exercício restrito da narrativa de investigação psicológica e, por fim, 4) uma prosa de viés mais conservador com baixa adesão a movimentos e experimentalismos de vanguarda. Quem tenha lido qualquer livro produzido por autores no Estado nos últimos anos sabe que este panorama mudou radicalmente a partir dos anos 2000. Tornou-se mais fragmentado, menos concentrado e até mesmo menos isolado. Em um fenômeno digno de nota, a literatura rio-grandense contemporânea passa tanto a olhar mais para fora quanto mais para dentro.
A literatura produzida no Rio Grande do Sul a partir da segunda metade dos anos 1990 – e, mais nitidamente, a partir dos anos 2000 – toma forma na esteira de algumas transformações radicais que tiveram grandes e sucessivos impactos no cenário artístico e social. Com a proliferação de oficinas literárias dedicadas a formar novos escritores e o barateamento dos meios de impressão, aumentam o número de pequenas empreitadas editoriais independentes e o volume de autores que fazem sua estreia na literatura, pulverizando um cenário que já vinha marcado pela dispersão. Ao mesmo tempo, fruto do processo da globalização econômica e da circulação geral cada vez mais intensa de capitais e mercadorias – fenômeno ao qual o Brasil não se manteve alheio – ocorre uma concentração crescente do mercado editorial nacional, com grandes casas comprando empresas concorrentes e assimilando-as na forma de selos. No Rio Grande do Sul em específico, esse quadro leva ao fechamento de algumas editoras tradicionais e à transferência, a partir da primeira metade da década de 2000, de muitos autores rio-grandenses já estabelecidos para casas do eixo central do país.
Cenário múltiplo
Falar, então, de “literatura gaúcha” nesse período significa lidar com uma produção conectada como nenhuma outra antes ao grande quadro brasileiro e internacional, tendo como resultado formal direto a diluição de muitos matizes temáticos regionais em favor de uma representação de inquietações hegemonicamente urbanas. Primeiro, sai de cena por um tempo o romance histórico, forma tradicional de reflexão sobre a formação do Estado. O romance minuciosamente descritivo dedicado ao retrato do mundo também é deixado em segundo plano, e toma à frente o relato protagonizado por jovens profissionais urbanos, muitas vezes exercendo atividades afins à do autor, como jornalismo, tradução ou a própria carreira de escritor, e lidando com questões que dizem respeito ao mal-estar interno e subjetivo do indivíduo no novo cenário político e anímico da contemporaneidade.
Em uma segunda etapa, a partir da década de 2010, também se apresentam à frente do palco livros que buscam amplificar e ressoar inquietações levantadas por movimentos sociais identitários na era do ativismo digital. É, também, por último, mas não menos importante, uma literatura produzida à luz do maior fenômeno tecnológico do período, em boa parte responsável por muitas das transformações descritas anteriormente: o surgimento e a consolidação da internet, o que pode explicar por que essa literatura em particular parece cada vez menos insular e mais o testemunho de uma geração não apenas sobre o território gaúcho, mas sobre inquietações globais hiperconectadas.
A própria “questão gaúcha” referida por muitos escritores anteriores – resumindo em poucas e grotescas linhas: a ideia de investigar na literatura uma certa tendência do Rio Grande do Sul a ver-se como uma unidade à parte do conjunto brasileiro, marcada mais pela proximidade com os países de fala argentina da fronteira do que pelos modelos de identidade brasileira propostos em âmbito nacional – deixa de existir ou tem seu eixo deslocado. Um dos reflexos desse deslocamento é o trânsito e o diálogo fácil da nova geração com movimentos e experiências semelhantes produzidos em outros Estados, algo facilitado pelo novo ambiente tecnológico de blogs e e-mails.
Um exemplo pode ser visto já em um dos marcos de uma nova geração das letras locais, surgido no início dos anos 2000: a Livros do Mal. Criada por Daniel Galera, Daniel Pellizari e Guilherme Pilla, a iniciativa independente serviu como uma carta de intenções de uma nova geração, apresentando não apenas os livros de estreia de Galera (Dentes Guardados) e Peliizari, mas também de outros nomes locais como Cristiano Baldi (Ou clavículas), Marcelo Benvenutti (Vidas breves) e Paulo Scott (Ainda orangotangos). Mas a editora, formada por uma geração de autores com diálogo franco com outros projetos semelhantes Brasil afora, também abriu espaço nas mesmas fileiras para autores de outras paragens com afinidades estéticas com o catálogo do selo, como os contos de atmosfera fantástica de Húmus (2002), do baiano Paulo Bullar, e a novela caótica Hotel hell (2003), de Joca Reiners Terron, nascido em Cuiabá e estabelecido em São Paulo.
A geração intercâmbio
No ensaio Desenho de uma Geração, no qual mapeia as diferenças entre gerações literárias do Rio Grande do Sul ao longo do século XX, Luís Augusto Fischer traçava um esboço de como os autores do Estado podem ser agrupados em torno de um conceito geracional. Ao esboçar as caraterísticas que diferenciam tais gerações, Fischer ensaia um perfil da geração que entra na cena literária a partir dos anos 1990, e que já apresentam, em embrião, elementos definidores do atual estado da ficção rio-grandense a partir da virada do século. Esse ensaio já representava, a seu modo, uma atualização das formulações de Regina Zilberman em seu livro, enfocando no olhar da nova geração uma disposição mais iconoclasta e experimental:
“Trata-se de uma geração bastante homogênea, de formação universitária típica nas áreas de Jornalismo e Letras, muitos mesmo com carreiras de pós-graduação, o que implica necessariamente uma dose acentuada e ordenada de informação literária e teórica, e, portanto, uma tendência natural ao universalismo pelo menos mental. Pelo mesmo fato, quase todos eles vivem profissionalmente em torno das letras, ou no magistério, ou no jornalismo, ou no mundo editorial. (…) Por fim, dado sociológico nada desprezível, são todos proprietários apenas de seus próprios cérebros, configurando a primeira ‘turma do apartamento alugado’ da literatura local (a expressão entre aspas foi cunhada por Paulo Ribeiro, numa conversa que tivemos a respeito deste artigo, antes de ele ser escrito)”, escreveu Fischer em um artigo publicado no infelizmente extinto Caderno de Cultura, em 2 de novembro de 1996.
Sempre achei a expressão “a geração do apartamento alugado” muito boa como uma espécie de resumo do conceito, ao ponto de eu próprio haver criado minha própria atualização do postulado para abarcar a novíssima geração com a qual tive contato como crítico literário a partir do início dos anos 2000, escritores e escritoras muitas vezes estabelecidos fora do Estado e publicados por editoras do centro do país e com histórias que não precisam mais buscar a legitimação da cor local, pelo contrário, expandem seu olhar e suas tramas para além das fronteiras não só do Estado mas do próprio país, formando a primeira “geração Intercâmbio” das letras rio-grandenses, com seus personagens de variadas procedências retratados como viajantes confrontando estranhamentos culturais em terra estrangeira.
O que era um singular cosmopolitismo na época de Erico e seu O Senhor Embaixador, recebido com bastante estranheza quando foi lançado, tornou-se uma temática natural para boa parte dos autores da Geração 2000. Representativa dessa circunstância é o surgimento, na segunda metade dos anos 00, da Coleção Amores Expressos, um projeto literário elaborado não apenas como uma coleção de livros, mas, apropriadamente ao espírito do tempo, como um pacote midiático. Iniciativa de um produtor cultural, Rodrigo Teixeira, o Amores Expressos enviou, a partir de 2007, 17 escritores para uma temporada de duas semanas em uma cidade diferente, de Nova York a Xangai, com o compromisso de elaborarem cada um blog de viagem durante a estadia e um romance com uma história de amor no período de um ano após o retorno.
O elenco de escritores arrebanhado para o projeto incluía nomes mais antigos consagrados por uma abordagem mais transgressora da literatura, como Reinaldo Moraes, Sérgio Sant’Anna e mesmo o quadrinista tornado escritor Lourenço Mutarelli, e integrantes de uma nova geração – quatro deles ligados de algum modo ao Rio Grande do Sul: Daniel Galera, Daniel Pellizzari, Paulo Scott e Amilcar Bettega. A forma como cada escritor abordou o desafio foi ela própria variada. Galera, primeiro autor do grupo a concluir seu romance, apresentou a história de uma escritora brasileira que vai a Buenos Aires para divulgar seu primeiro livro e decide ficar por lá, atraída por um estranho misterioso e por um grupo de escritores dedicados a reencenar como realidade histórias que eles próprios escreveram. Amilcar também enviou à Turquia uma jovem brasileira, filha de imigrantes que volta ao país de seus pais em busca de identidade. Já Scott, na curta novela Ithaca road, ambientada em Sidney, apresentou uma protagonista mestiça de maori com europeu, e Pellizzari, no romance Digam a Satã que o recado foi entendido, entrecruza várias tramas e linhas narrativas protagonizadas por estrangeiros em Dublin, nenhum deles brasileiro.
Cosmopolitismo
Mais sintoma do que causa, o Amores Expressos apenas transformou em fenômeno de mídia uma tendência que já se ensaiava e que teve continuidade independente do projeto, com outros autores do Rio Grande do Sul lançando livros ambientados no Exterior. Marcelo Backes com seu maisquememória (2007), misto de romance, ensaio e livro de viagens sobre um acadêmico brasileiro na Alemanha da primeira década do século 21. Paulo Scott já havia, antes de Ithaca road, lançado seu romance mais ambicioso, Habitante irreal, em que parte da história se transfere para Londres nas pegadas do personagem Paulo, um idealista de esquerda que, desiludido política e pessoalmente, abandona a indígena adolescente de quem havia abusado e vai morar em um squat, um imóvel invadido, na Inglaterra. Antônio Xerxenesky cria uma trama de ação oitentista em F. (2014), protagonizada por uma brasileira assassina de aluguel vivendo na Europa, e depois apresenta seu melhor livro, Uma Tristeza Infinita, pelo ponto de vista de um psiquiatra francês em um sanatório na Suíça lidando com diversas questões abertas pelo horror da recém-encerrada II Guerra.
Carol Bensimon, em O clube dos jardineiros de fumaça (2017), narra a migração de um brasileiro para a Califórnia, interessado em investir na produção de maconha, legalizada poucos anos antes da publicação do livro. No mais recente Diorama, ela faz uma conexão entre esse olhar “de fora” com a realidade local ao narrar a história de uma jovem que se muda para os Estados Unidos e faz carreira como taxidermista após sua família ser atingida por um escândalo político envolvendo sexo e homicídio, numa versão disfarçada do Caso Daudt. Luísa Geisler, em De espaços abandonados (2018), narra a busca de uma brasileira pela sua mãe na Irlanda e sua imersão no universo cada vez maior dos brasileiros expatriados buscando novas perspectivas na Europa. Verônica Stigger faz, em Opsianie Swiata, a significativa crônica da viagem de um europeu da Polônia para Manaus, onde descobriu, por meio de uma carta, ter um filho em situação de urgência. Samir Machado de Machado leva suas aventuras não apenas para fora na geografia, mas no tempo, uma vez que suas histórias inspiradas em aventuras capa-e-espada Quatro Soldados, Homens Elegantes e Homens Cordiais se passam no século 18, virando do avesso, a seu modo, a oposição entre Mundo Novo colonial selvagem e as rebuscadas regras de etiqueta das cortes europeias.
E esse não é um panorama exclusivo do Estado – outros livros recentes como Sebastopol, de Emílio Fraia, ou Eufrates, de André de Leones, também acenam para esse panorama. Por outro lado, há uma segunda tendência tão forte quanto na literatura contemporânea que faz acompanhar de outro tipo de narrativa e preocupação, na contracorrente da literatura até então hegemonicamente branca, masculina e de classe média do Brasil e do RS, numa mobilização afetada pelas pressões que já ecoavam com força na sociedade fora das páginas dos livros, em especial a ascensão de uma postura política voltada para a diversificação de vozes. Surgem livros que destacam experiências da periferia de grandes cidades; a luta por protagonismo de uma população negra invisibilizada; a presença sem alarme da sexualidade não normativa; e cada vez mais livros escritos por mulheres que tentam ao mesmo tempo se fazer mais reconhecidas e publicadas ao mesmo tempo em que rejeitam o rótulo de nicho “literatura feminina”.
Identidade
A ausência de mulheres e de afrodescendentes na literatura nacional, tanto dentro das páginas quanto com o nome na lombada do livro, foi uma das discussões mais levantadas na literatura nacional na última década. E, à força de exigir mais espaço para sua produção, tais autores e autoras foram tendo sua presença reconhecida. Uma coletânea intitulada Negras palavras gaúchas, produzida em 2013 e idealizada pelo jornalista e escritor Oscar Henrique Cardoso, reuniu 23 escritores negros do Rio Grande do Sul em um único volume. Na geração surgida a partir de 2000, são destaque hoje Jeferson Tenório, autor dos romances O Beijo na parede (2015) e Estela sem Deus (2018) e de seu maior sucesso, a narrativa de impacto inegável O Avesso da Pele.
A presença do negro no Pampa ganha uma perspectiva de dentro na trilogia de romances de Luíz Horácio Perciliana e o pássaro com alma de cão (2006), Nenhum pássaro no céu (2008) e Pássaros grandes não cantam (2010). Luiz Maurício Azevedo, autor de estudos de literatura e comentários sobre teoria marxista, publicou em ficção uma desconcertante novela distópica titulada Pequeno espólio do mal, além de uma impactante narrativa sobre famílias mestiças e vozes silenciadas com A manipulação das ostras. José Falero criou, com Supridores, um dos grandes romances sociais do Brasil recente.
Dentro dessas manifestações de identidade, também se enquadram os cada vez mais amplos exemplos da literatura queer no Estado. De nomes como Natália Borges Polesso e seus sólidos Amora (contos) e A Extinção das Abelhas (romance) aos recentes As coisas e Visão Noturna, de Tobias Carvalho, que formam, pela perspectiva única da sexualidade não normativa um mosaico das mesmas anomias urbanas e a necessidade de conexão já abordadas em muitos contos e novelas surgidos a partir dos anos 2000. E aqui se vê também uma intersecção com os já mencionados livros de Samir Machado, dado que Homens Elegantes e Homens Cordiais narram as aventuras de espião homossexual da Coroa portuguesa, nascido no Brasil, mas vivendo nas instáveis cortes europeias.
O que ficará dessa movimentação toda é algo para se ver em algumas décadas. Só acho, ao traçar este humilde e incompleto, é que é impossível ver essa paisagem intensa e reclamar que “não tem nada acontecendo”.
Foto da Capa: Jeferson Tenório – por Flavio-Fontana /Divulgação