Millôr Fernandes escreveu “Em tempo de guerra/mentira como terra/Em tempo de paz/mentira como gás/Em tempo de eleição/mentira de montão”. Não se trata aqui de taxar o discurso eleitoral como mentiroso. O que ocorre é que a disputa de discursos coloca em primeiro plano a necessidade de construir um posicionamento que possa construir ao mesmo tempo um caminho para o candidato e neutralizar os opositores.
Nesse contexto, muitas vezes, as questões de fundo acabam desaparecendo do debate. Perde-se, com isso, a oportunidade de colocar para a população a reflexão sobre o que seria fundamental para que se decida sobre o que afeta a vida de todos.
É claro que a expressão todos abriga uma série de disputas de classe, e são elas, no fim das contas, que estão em jogo. Contudo, há uma realidade dos fatos que coloca o coletivo, mesmo que dividido, numa determinada condição. É a partir da clareza sobre essa condição que se deveria optar sobre qual caminho eleger para dar conta dos avanços possíveis.
Especificando: há décadas, o Brasil figura entre as dez maiores economias do mundo. Em determinadas ocasiões, sai um pouco deste seleto grupo, mas não se distancia muito dele. E o que significa estar entre as dez maiores economias do mundo?
Primeiro, o mundo tem cento e noventa e três países reconhecidos internacionalmente, de acordo com a ONU. Ou seja, há cento e oitenta e três atrás da décima nação colocada. Entre essas dez nações, o PIB nominal tem uma configuração que tem nas duas primeiras mais ricas uma distância enorme já para a terceira colocada. Estados Unidos, que está no topo da lista, tem um PIB na casa dos vinte e cinco trilhões. A seguir, China, na casa dos dezenove, quase vinte. Na terceira posição, o PIB já cai para a casa de quatro, quase cinco trilhões. O Brasil, atualmente em décimo, já figurou em quinto. Hoje, a quinta economia está na casa dos três trilhões e meio.
Então, quando se está decidindo em quem votar para presidente do nosso país, é preciso saber que se está escolhendo o governante de um dos países mais ricos do mundo. Paradoxalmente, é um país rico com uma enorme quantidade da população pobre. A primeira questão para o possível futuro postulante ao cargo é saber qual a sua posição frente a isso. Como fazer com que a enorme riqueza gerada seja revertida em bem-estar social para toda a população.
Sim, qual a política de distribuição de renda. Na história do nosso país, há dois exemplos de reversão da arrecadação de impostos para custear benefícios para o coletivo: a saúde e a educação públicas e gratuitas. As políticas de cotas para pessoas negras nas universidades públicas também são. As políticas de transferência de renda idem. Entram nesse campo as taxações das grandes fortunas. E o que mais é possível fazer? Dirá um liberal que é preciso reduzir a máquina pública e colocar tudo nas mãos da iniciativa privada. A pergunta que se faz é: sem mediação de uma política pública, o mercado por si só irá acabar com a brutal concentração de renda? Anos de capitalismo brasileiro mostraram o contrário.
O que o seu candidato pensa sobre isso tudo?
E termino aqui com um poema do meu livro Carta aberta ao Demônio, editora Libretos, 2019:
CUPINS
Quando os cupins se alastram
é preciso jogar a madeira fora,
a porta do armário, a casa inteira,
e, quando mais nada sobrar,
o cupim a si mesmo devora.
Age por dentro, em silêncio,
e vai pondo abaixo o agora
de tudo que um dia se quis,
a morada, a alegria, um país.
– Que fizeste do teu país, cupim?
– Um país é uma ficção,
um amontoado de diferenças,
e sobre elas passaram massa corrida
e sobre a massa tinta à óleo
e sobre a tinta papel de parede
com as cores de uma bandeira.