Há que se ter paciência para enfrentar a cidade e sua concretude agressiva nesses tempos de extremos e seus humanos seres que vão e vêm atordoados, às vezes tão impermeáveis. Há que desviar os olhos dos espigões azulados, disfarçados de céu, e das marcas de empreiteiras sem escrúpulos que descaracterizam o espaço urbano, com o aval de governos e administradores públicos que se entregam por um punhado de reais.
Há que se pegar o ônibus no ponto escaldante, mesmo que pare longe da calçada e seja difícil o acesso e o equilíbrio ao subir. Há que suportar o olhar do motorista que, apesar de piedoso, não percebe que estacionou de forma inadequada e não consegue ver a diferença. Já é muito para ele carregar os passageiros exaustos do cotidiano pelas ruas tumultuadas da metrópole. Há que se esticar ao máximo pernas curtas, como as minhas, para acessar os balcões de bancos e outros tantos balcões. Os atendentes, distraídos no cumprimento mecânico de suas tarefas, pouco sabem de acolhimento e inclusão.
Há que se encarar os sorrisos e as falas protocolares que louvam a “superação” e nada fazem pela acessibilidade.
Há que se desviar dos carros estacionados irresponsavelmente nas calçadas. O espaço público, sem fiscalização, é mais das máquinas do que das pessoas. E para quem anda em cadeira de rodas a alternativa é disputar o espaço das calçadas com os carros. Há que se caminhar no meio do lixo que transborda no entorno. Os próprios moradores colocam nos containers, misturando tudo e mostrando total descaso com a cidade, já tão abandonada. Há que se ter cuidado para cruzar nas faixas de segurança. São poucos os motoristas que consideram a faixa um sinal de alerta e respeito aos pedestres. Há que se respeitar os sinais de trânsito, criados para disciplinar o movimento urbano, mas muitos pedestres e motoristas pouco se importam.
Há que se enfrentar o medo de sair de casa e a inquietude que acompanha cada passo. É um medo real e é também o medo lamentável de gente como a gente que anda perdida por aí. Há que não se submeter ao que humilha como falou o cidadão Eduardo Marinho há um bom tempo, quando abriu mão do conforto do mundo burguês, foi viver na rua e descobriu a arte para se manifestar.
Como ele, penso que é preciso simplesmente viver e não cultivar o desejo insólito de vencer na vida.
O que é mesmo vencer na vida?
Há que se abandonar as “expectativas mercadológicas da excelência” e uma vida “sob estresse e sob uma cobrança que nunca irá ser satisfeita porque todos nós, seres humanos, temos singularidades, com possibilidades e limitações, sendo estas mais evidentes (como é o caso de uma pessoa com deficiência) ou não”, como escreveu Carla Abreu, que tem nanismo.
Há que se estimular o afeto, a dignidade, a delicadeza, o encontro, a diversidade, a tolerância. Há que se brincar com as crianças e se cercar dos amigos e gente do bem, em nome de tempos menos ásperos, mais amorosos, inclusivos e acessíveis.
Leia mais textos de Lelei Teixeira aqui.
Foto da Capa: Lelei em frente a um balcão não acessível | Arquivo da autora