Dezenas de milhares de israelenses têm saído às ruas há quase trinta semanas para protestar contra o governo de Binyamin Netanyahu (foto da capa) e seu pacote de medidas antidemocráticas. Tenho acompanhado as manifestações pelas redes sociais mas principalmente pelas fotos e vídeos de amigos e familiares que são presença constante nos protestos contra o Bibi, como é chamado o atual primeiro-ministro.
Ontem, mesmo com o calor de 35 graus na cabeça, minha cunhada Sybele arranjou tempo de mandar vídeos e avisar o que estava acontecendo enquanto a multidão entrava em Jerusalém. A filha dela, minha sobrinha Yarah, outra presença assídua nos protestos, fez stories no terraço de casa, mostrando os protestos passando na frente da casa dela em Hod Hasharon, uma das mais de 150 cidades em que pessoas se reuniram contra a chamada “reforma judicial”.
Leio o Twitter em hebraico e inglês e depois vou conferir o que o Nelson Burd está publicando nas redes sociais e no site Israel de Fato, ótima fonte para se informar (em português) sobre o que está acontecendo naquele País. Nelson e Bernardo Schanz trazem o olhar do Bom Fim sobre o noticiário cotidiano da Terra Santa.
Antes de qualquer coisa, é preciso entender que esse não é um conflito de esquerda e direita, mas entre manutenção de uma democracia liberal, com suas qualidades e defeitos, e os adeptos da chamada “democracia iliberal”, apelidada de “democratura”, regime em que as eleições continuam a acontecer, mas o controle externo sobre o governo é extinto e as liberdades civis são atacadas, como na Polônia e Hungria.
A coalizão governamental une a antiga direita tradicional (o partido Likud), partidos ultra-ortodoxos e nacionalistas extremistas e messiânicos. A política israelense é atravessada por questões étnicas: judeus e árabes, judeus oriundos dos países ocidentais (os chamados asquenazis) e os judeus orientais (também chamados de sefaradis). Há um partido formado por judeus que emigraram da antiga União Soviética. Existem partidos laicos e os partidos de judeus ultraortodoxos, além dos partidos judaicos religiosos nacionalistas. Para completar, temos os partidos de esquerda e os chamados partidos de centro, os principais grupos de oposição ao governo.
Achou complicado entender? Imagina colocar isso para funcionar… Não por acaso há eleições praticamente anuais desde 2019. Os governos já iniciam com todos apostando quanto tempo irá durar.
Se eu falei das peculiaridades da política do País, pretendo fazer aqui um pequeno exercício de imaginação para explicar os motivos das manifestações.
Imagine você um país governado por uma coalizão de partidos e políticos de extrema-direita em que alguns estão buscando impor uma agenda religiosa sobre a sociedade enquanto outros estão mais interessados em defender o direito de seus correligionários usarem suas armas livremente.
Imagine que nesse país muitos dos ministros venham dos partidos mais extremistas do espectro ideológico e busquem uma agenda de permanente confronto com a parte da sociedade que se opõe a eles. Rotineiramente dão declarações vistas como radicais por quem não é do seu cercadinho, como pedir que a polícia reprima manifestações com violência, enquanto o filho do governante faz tweets raivosos contra os opositores.
Imagine que muitas pessoas chave desse governo defendem abertamente uma agenda contra as pessoas LGBTQIAP+ e seus direitos, inclusive se gabando e fazendo piada de sua homofobia.
Imagine um governo que acuse a todos que não concordem com ele de esquerdistas, mesmo seus antigos aliados de direita. Imagine que esse governo acuse os esquerdistas por todos os males que existem no País. Aliás, faixas escritas “esquerdistas traidores” são comuns de serem vistas nos atos dos apoiadores desse governo. Xingamento também dirigido àqueles que defendem negociações de paz do País com seus vizinhos, às universidades, à imprensa e a qualquer pessoa ou grupo que não esteja de acordo com eles.
Imagina que isso torne o País tão polarizado a ponto de famílias brigarem entre si e pessoas romperem amizades de décadas.
Imagine que nesse País há um canal de televisão que passa os dias dando fake news, demonizando a oposição ao governo e fazendo discurso de ódio, apostando forte na chamada “guerra cultural’? O nome de seu programa mais famoso? “Os Patriotas”.
Imagine que um importante ministro venha defender uma lei que tire a responsabilidade dos policiais e militares em suas ações, uma “lei de excludente de ilicitude”. Lembram dela?
Imagine viver em um país em que o principal governante é comparado a… Trump. Já pensaram como seria viver em um país assim? Um país que fique isolado e tenha como aliados somente países como… Hungria e Polônia?
Agora, imagine que esse governo diz que não consegue fazer nada porque a oposição não deixa, especialmente o Judiciário, que acusa de ser politizado, ativista e claro, esquerdista. Diz que o País está à beira de uma “ditadura do Judiciário” ou uma “ditadura do Supremo Tribunal” que está indo contra a vontade popular.
O que esse governo está fazendo? Cria e busca aprovar leis que limitem qualquer espécie de controle judicial para seus atos. Enquanto isso, as bolsas caem vertiginosamente, o dólar sobe às alturas, militares prometem se recusar a servir e as empresas do setor mais dinâmico da economia já começam a transferir suas operações para o exterior.
Essas leis, que são vistas como um verdadeiro golpe de Estado são chamadas pelo governo de “reforma judicial”: um conjunto de dezenas de leis em que a sociedade civil é sufocada e o Judiciário perde os poderes de revogar ou anular atos de autoridades governamentais.
Pela nova lei, aprovada em 24/07, o Judiciário não poderá invalidar nenhum ato do Executivo ou Legislativo com base no “Princípio da Razoabilidade”, que contesta a validade de um ato que não se entende razoável, seja por ignorar algum fato ou aspecto importante em seus fundamentos, por não valorados adequadamente os fatos que a fundamentam ou quando suas bases são inapropriadas, como desvio de finalidade.
O Estado de Israel não tem uma constituição escrita, o que faz esses controles serem ainda mais importantes do que em uma sociedade como o Brasil, que tem regras claras na Constituição. Ademais, é um sistema parlamentarista, em que o governo controla tanto Executivo como Legislativo, fazendo com que o Judiciário seja o principal fiscal do governo e o guardião dos direitos fundamentais.
Outra diferença que há em relação ao Brasil é que muitos dos principais cargos desse sistema de controle são compostos por comitês com a participação da sociedade e oposição. São cargos tradicionalmente ocupados por pessoas de perfil técnico e não político, além de funções estáveis, que estão além de uma eventual demissão por motivos políticos. Com a nova lei, fica mais fácil para o governo interferir na nomeação e demissão de seus eventuais acusadores e nomear sua patota.
Neste 24 de julho, com a chamada “Lei da Razoabilidade”, o Parlamento israelense deu permissão para o governo começar a implosão de todo sistema de controle democrático. Assim, oferece ao primeiro-ministro a possibilidade de se livrar dos processos em que é acusado de corrupção enquanto conduz seu País para uma autocracia sem controle externo e ameaçando a proteção aos direitos dos demais grupos e pessoas. Nada de bom pode se esperar disso.
Foto da Capa: Agência Brasil