Um amigo me chamou. Chamou à cowboy, ligando direto, sem mensagem avisando antes. Hoje em dia isso é raro e costuma apontar para uma urgência. Era uma. Ele estava apaixonado e precisava falar com alguém. O roteiro, depois, continuou clichê. Nos encontramos em um bar e, antes do primeiro chope, ele era muita alegria e alguma apreensão. Precisou três chopes para que fizesse a pergunta essencial:
– Será que estou enganado?
Estava apaixonado, logo não me deixou responder. A cada novo chope, acrescentava uma qualidade da pessoa. Era perfeita. Em tudo. Bela. Inteligente. Bem colocada. Cheia de vida, de planos. À cara dele. Um corpo feito para o dele. Com uma alma e tanto. Sem defeitos.
Foi então que, lá pelo sétimo chope, o roteiro deu uma guinada. É o que costuma acontecer, quando há paixão. Eu pensava na Utopia de Thomas Morus, especialmente no trecho em que os noivos se mostram nus, um para o outro, como uma forma de evitar decepções futuras, naquele tempo sem vida sexual antes de se casar. Também pensava no Fragmentos de um discurso amoroso, do Roland Barthes, naquele trecho em que um amante não dispõe do dispositivo de aguardar o outro amante. Mas ele não pensava em nada e, por vê-lo absolutamente estático, aproveitei a brecha do décimo chope para responder à pergunta que havia feito no terceiro:
– Sim, claro que estás enganado. A paixão é um engano, um ledo engano, talvez o maior deles. Ao mesmo tempo, ela é necessária para que o roteiro siga adiante, e não estanque, como o destino de muitas histórias desapaixonadas.
Ele retomou alguma atenção e, sem pensar em Morus nem em Barthes, fez uma cara de quem estava se sentindo desamparado. Mas aquilo também não parecia verdade. Eu ofereci amparo suficiente para atender a ligação urgente, deslocar-me até ali, olhá-lo, ouvi-lo e, finalmente, dizer a minha verdade. E ainda me sobravam forças para garantir que continuaria torcendo muito por eles até que chegasse o momento em que os perfumes iam se desvanecer, as alturas ocupariam o tamanho real, os corpos deixariam de ser perfeitos, as almas contariam as suas atrozes tristezas, as inteligências se mostrariam tacanhas e eles se vissem de fato, por fora e por dentro, pela primeira vez.
E mesmo assim continuassem juntos, onde quer que fosse, quando o amor chegasse. Como um engano que a gente enxerga, aceita, tolera. E ama.
Foto da Capa: Freepik
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