Eu não vejo outra forma de emancipação de um povo que não passe pela educação como via capaz de apresentar e desenvolver os sujeitos para que possam, através das relações com o conhecimento, tornarem-se protagonistas de suas vidas.
Não quero discorrer hoje pelo tempo de escravização que assolou milhares de pessoas africanas e têm nos nossos corpos, ainda hoje, reflexos fortes tanto físico quanto psíquico.
Proponho pensarmos juntos quais os espaços educativos podemos sonhar para as nossas infâncias e adolescências para que os mesmos possam se constituir.
A escola como é praticada hoje não foi feita para nós, a escola não quer crianças pretas e pardas, pois desde a sua concepção histórica não privilegia a emancipação de corpos e mentes negras. A quem interessa que sejamos livres, compreendedores de nossa história e sabedores do exercício de potencialidades múltiplas.
Eu sou uma pedagoga negra contraditória: na mesma proporção que acredito que a escola não foi feita para nós, entendo a potência da escola pública como instituição mais acessível e possibilitadora de constituir uma nação através da educação e fortalecimento.
Existe um provérbio africano que diz: “Enquanto reza, vá fazendo”! O que isso significa nessa conversa que estamos tendo? É preciso continuar sonhando, construindo um projeto de educação plural, mesmo em meio às dificuldades que a sociedade impõe para que não possamos avançar como povo.
Eu acredito que fazer enquanto se reza é também apoiar causas, projetos, entidades, coletivos que sejam voltados às infâncias negras ou que sejam de base africana e/ou antirracistas. Nós resistimos até hoje, pois foi fora da escola, nos aquilombamentos que nossa história nos foi contada pelos griots, nos foi musicalizada nas cantigas e lamentos, nos foi perpetuada nas rodas jongo, na capoeira e nas escolas de samba.
Nossas escolas também foram os terreiros, as casas de matriz africana, lugares de culto à memória ancestral e de ligação com nossa energia vital, o axé que nos preenche através da orixalidade. O legado do nosso povo não cabe dentro de um quadrado de uma sala de aula. Não morreu na travessia do Atlântico, veio vivo em nossas mentes e em nossos corações, portanto, somos transbordantes em nossos modos de ser e de estar no mundo. A escola que temos hoje será que acolhe tudo isso que somos?
Masss … é preciso viver neste país. Viver e sobreviver jogando o jogo possível e exigindo as garantias de direitos que temos. A educação é o mínimo de reparação possível que pode ser nos dada pelas milhares de vidas tiradas de África e pela brutalidade do processo de escravização que tivemos. A garantia de ensino é o caminho mais próximo da conquista de direitos ao povo negro.
Então quais caminhos percorrer?
A promoção e a valorização da cultura afro-brasileira na educação e combater o racismo são passos fundamentais para construir uma sociedade mais justa e inclusiva. A Lei 10.639/03 estabelece a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas, contribuindo para desconstruir estereótipos e promover uma educação igualitária.
- Investimento e planejamento das Secretarias de educação e mantenedoras
Promover um planejamento de inserção da aplicação da lei nas escola, destinar recursos financeiros para a realização de formações, aquisição de materialidades para complementar as práticas pedagógicas e fiscalização das práticas a nível de gestão e docência.
- Capacitação de Professores
Oferecer formação continuada para os educadores, abordando temas relacionados à história e cultura afro-brasileira.
Incentivar a participação em workshops, palestras e cursos que abordem a temática do combate ao racismo e a promoção da igualdade racial.
- Material Didático Inclusivo e com protagonismo afirmativo:
Revisar e adaptar os materiais didáticos, assegurando que eles incluam de maneira adequada a história e a cultura afro-brasileira.
Incentivar a produção de materiais que retratem de forma positiva a contribuição dos afro-brasileiros para a sociedade.
- Eventos e Atividades Culturais
Promover eventos culturais que celebrem a diversidade étnico-racial, como feiras, exposições, festivais e apresentações artísticas.
Incluir datas significativas, como o Dia da Consciência Negra, no calendário escolar, com atividades relacionadas.
- Promoção da Autoestima
Implementar ações que fortaleçam a autoestima das crianças e jovens negros, destacando suas contribuições positivas para a sociedade.
Incentivar projetos que abordem a representatividade negra em diversas áreas, como literatura, ciência, esportes e artes.
- Diálogo e Debate
Estimular o diálogo aberto sobre o racismo, promovendo debates e discussões nas salas de aula.
Incentivar a participação dos estudantes, proporcionando um ambiente seguro para expressarem suas experiências e opiniões.
- Parcerias com Comunidades
Estabelecer parcerias com organizações da comunidade afro-brasileira para enriquecer as atividades educacionais.
Convidar membros da comunidade para compartilhar suas experiências e conhecimentos, proporcionando uma perspectiva mais ampla.
Avaliação Contínua
Implementar mecanismos de avaliação contínua para verificar o impacto das iniciativas na redução do racismo e na promoção da igualdade racial.
Manter um diálogo constante com a comunidade escolar para identificar áreas de melhoria e ajustar as estratégias conforme necessário.
…
Esses pontos acima não são novidade para educadores, pais e gestores públicos, o que nos faz pensar nas razões da dificuldade de aplicabilidade das leis ligadas a ERER – Educação para as Relações Étnico-Raciais.
É importante destacar na finalização desta escrita que educar as relações é pensar no cotidiano das mesmas, nas intervenções e na forma como pais, educadores, gestores e alunos vemos o mundo.
“Enquanto reza, vá fazendo!”
Fernanda Oliveira é pedagoga pela UFRGS, mãe, professora, fundadora do Projeto Social Oorun que atua na afrobetização de crianças negras, cofundadora do coletivo de Profes Pretas, gestora de Filosofia e Cultura na Odabá