Às vezes, nos deparamos com situações com as quais não estamos preparados para lidar. Elas nos pegam desprevenidos, inertes em nossas distrações corriqueiras, quando sequer podemos imaginar o que teremos que enfrentar. Foi assim que a tragédia, ocorrida em maio, me encontrou: absorta em meus planos de vida, submersa em meu mundo quase ideal. Mas não foi apenas comigo que isso aconteceu, ninguém esperava o que viria pela frente depois daqueles primeiros dias de chuva. Nunca havia acontecido algo com tamanha dimensão no Rio Grande do Sul. Nem mesmo a tão falada enchente de 1941 causou tanta destruição. E no meio dessa crise, lidar com os próprios sentimentos se tornou algo muito difícil.
Para quem ainda não sabe, além de escritora, sou professora da rede pública no Rio Grande do Sul. E, como a maioria dos professores que eu conheço, tenho o hábito de carregar o mundo nas costas e tentar resolver os problemas dos estudantes, o que se intensificou nos dias em que tivemos as aulas canceladas por causa da calamidade. Paramos as atividades escolares por duas semanas e, durante esse período, eu não deixei de me preocupar com cada um deles, passei noites em claro sem saber o que fazer e me sentindo culpada por não ter sido afetada diretamente. Eu ainda estava em cama quentinha, quando uma grande parcela da população não tinha nem casa para morar. Eu ainda tinha um solo seco para pisar e roupas para vestir, enquanto muita gente via os seus pertences boiarem em meio aos destroços do que um dia foi algo sólido.
Sofri em todos aqueles dias, mas confesso: o meu maior obstáculo, assim como aconteceu na pandemia, foi lidar com a possibilidade do retorno em meio ao caos. No momento em que foi determinada a data em que voltaríamos para a escola, eu me vi fragilizada por não saber o que encontraria. Eu não sabia se os meus alunos tinham sido atingidos, se estavam abrigando alguém em suas casas, se tinham perdido algum familiar. Eu não sabia como eles estavam emocionalmente e esse era o meu maior problema: ouvi-los falar de seus medos, enquanto eu não conseguia me livrar dos meus.
Recorri então ao livro Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade, de bell hooks (foto da capa), mais especificamente ao trecho em que a autora diz:
Quando os professores levam narrativas de sua própria experiência para a discussão em sala de aula, elimina-se a possibilidade de atuarem como inquisidores oniscientes e silenciosos. É produtivo, muitas vezes, que os professores sejam os primeiros a correr o risco, ligando narrativas confessionais às discussões acadêmicas para mostrar de que modo a experiência pode iluminar e ampliar nossa compreensão do material acadêmico. (p. 35)
Percebi que eu deveria partir das minhas vivências, mostrar a eles que eu também estava triste, antes de levantar questionamentos acerca da tragédia.
Nessa obra, bell hooks, escritora, professora e intelectual, escreve sobre uma nova educação que ensina a transgredir. Baseada nos escritos de Paulo Freire, bell hooks instiga o leitor a repensar as práticas educacionais na era do multiculturalismo, onde o professor não deve ser apenas um intelectual detector do conhecimento, mas também alguém que também sabe ouvir.
Educar para a prática da liberdade é ensinar a pensar, questionar e não se calar diante do racismo, do sexismo e de outros problemas sociais que enfrentamos todos os dias. Hoje, vemos a necessidade urgente de falar sobre o aquecimento global, as mudanças climáticas, o descaso dos governantes e a cobiça dos empresários diante dos recursos naturais. Esses assuntos devem ser levados para a sala de aula e não devem se esgotar em poucos dias letivos. No entanto, mais do que nunca, precisamos nos deter à saúde mental das crianças, dos adolescentes e, principalmente, dos professores. Não está fácil para ninguém, mas se os professores não estiverem bem, não terão forças para dar suporte aos seus educandos.
Trago esse relato de experiência como uma reflexão sobre o dia do professor e a sua importância na sociedade atual. Infelizmente, o papel essencial dos educadores nem sempre recebe o reconhecimento que merece. Em meio a uma realidade marcada por desafios constantes, como baixos salários, falta de infraestrutura adequada e desvalorização profissional, os professores seguem desempenhando a função de agentes transformadores. São eles que, muitas vezes, despertam o senso crítico nos alunos, ampliam horizontes e contribuem diretamente para a formação de cidadãos conscientes e preparados para atuar em um mundo cada vez mais complexo.
Foto da Capa: bell hooks / Reprodução do YouTube
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