Na semana passada houve o ajuizamento de uma Ação Civil Pública (ACP), movida pela Associação Brasileira de Liberdade Econômica (“ABLE”) e pelo Instituto de Direito e Economia do Rio Grande do Sul (“IDERS), em face da União Federal (União), perante a Justiça Federal do Estado do Rio Grande do Sul, que busca em síntese que a União seja determinada a estruturar em até 30 (trinta) dias, um plano integral de apoio financeiro ao setor produtivo do Rio Grande do Sul (RS) e a ampliação de recursos destinados ao subsídio das linhas de crédito inclusive para empresas maiores. Na peça inicial obviamente ocorre amplo embasamento fático, jurídico, probatório, e um detalhamento minucioso do que se pede.
Vale transcrever trecho do requerimento da tutela de urgência antecipada e cautelar:
“seja a União determinada a estruturar em até 30 (trinta) dias, plano integral de apoio financeiro ao setor produtivo empresarial e industrial do RS, em linha similar ao Peac FGI Crédito Solidário RS, contendo, entre outras coisas, com previsão de quitação subsidiada de financiamento para as empresas industriais, comerciais e agrícolas, não enquadradas nas categorias contempladas no PRONAMPE e PRONAF/PRONAMP, até o limite da comprovação dos danos sofridos decorrentes dos eventos climáticos extremos ocorridos no RS nos meses de abril e maio de 2024, sendo, para isso, disponibilizado valor condizente com as mais recentes estimativas oficiais dos prejuízos sofridos pelo setor produtivo. 112. Ainda, a tutela antecipada deverá contemplar também a ampliação de recursos destinados ao subsídio das linhas de crédito no âmbito do Peac FGI Crédito Solidário RS, de modo a garantir quitação subsidiada dos valores principais dos financiamentos contraídos, em um mínimo de 40% para todas as empresas que comprovem danos decorrentes das enchentes, sendo esse subsídio extensível até 100% do 42 financiamento, a depender da gravidade e da comprovação dos danos experimentados, sendo para isso ampliado o valor disponibilizado para tais medidas de modo a atender as estimativas oficiais dos prejuízos causados pelas enchentes. VII.”
Tais medidas seriam muito importantes para o setor produtivo, pois de acordo com ACP:
“29. Apesar de o Governo Federal ter realizado anúncio público de que teriam sido repassados R$ 51 bilhões para o RS10, na verdade a destinação efetiva de recursos até o momento foi muito menor.
- Medidas como a antecipação de bolsa-família, abono salarial e antecipação da restituição de imposto de renda são evidentes paliativos que sequer esboçam efetiva recuperação às vítimas das enchentes. Também não representam verdadeiro apoio financeiro, pois tais benefícios já seriam de qualquer forma recebidos pelas pessoas.”
Esse tipo de ação, embora pareça inusitada, conforme informado na própria ACP, já foi ajuizada no Brasil com sucesso. Isso ocorreu no julgamento da ACO 3.473/DF, sob relatoria da Min. Rosa Weber, quando “no contexto da calamidade pública gerada pela pandemia de Covid 19, foi a “União condenada em obrigação de fazer atinente à prestação de suporte técnico e apoio financeiro para a expansão da rede de UTI no estado do Maranhão durante o período de emergência.”
Essa ACP inclusive transcreveu importante jurisprudência do STF no sentido de que “…à União Compete planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas (art. 21, XVIII, Da CF) – v.g. ADPF 756, ADI 6.586 e 6.587, todas de relatoria do Min. Lewandowski; e ADPF 709-MC , Rel. Min. Roberto Barroso. (….).
Esse dever da União de repassar aos entes subnacionais sua quota federal de abertura e manutenção dos leitos de UTI-Covid (programa excepcional próprio) decorre precisamente da posição central que deve exercer durante o estado de emergência sanitário, o qual, portanto, não se confunde com o repasse de verbas federais para ações universais de saúde nos Estados e Municípios, este decorrente do dever geral de cofinanciamento e da natureza tripartite do SUS (CF, art. 198,§ 1º).
(…)
Nesse contexto, uma vez identificada omissão estatal, ou gerencialmente errático em situação de emergência, como restou comprovado no presente caso, é viável a interferência judicial para a concretização do direito social à saúde, cujas ações e serviços são marcadas constitucionalmente pelo acesso igualitário e universal (CF, arts. 6º e 196).
De fato, é restrita a margem de discricionariedade na concretização das políticas de saúde coletiva, sobrelevado, esse dever prestacional, em situação de emergência sanitária. É da jurisprudência esta Suprema Corte ‘(…) que o dever estatal de atribuir efetividade aos direitos fundamentais, de índole social qualifica-se como expressiva limitação à discricionariedade administrativa. (…) Portanto, não restam dúvidas sobre o dever constitucional da União em prestar suporte técnico e apoio financeiro para a expansão da rede de UTI no Estado requerente durante o período de emergência sanitária (pedido III)”.
A ACP salientou que o desastre ambiental e humanitário atingiu mais de 90% dos Municípios do RS, que correspondem a 83% do recolhimento do ICMS do RS. Outrossim, que foi destruída a infraestrutura, bens de capital, capacidade produtiva, patrimônio, bens , estoque, maquinário, etc., e que esses investimentos não serão facilmente repostos via novos financiamentos, e que cerca de 91% das fábricas do RS estão alagadas.
Segundo as Autoras da ACP, as medidas anunciadas pelo Governo Federal para o enfrentamento das enchentes no RS não são suficientes e adequadas para o enfrentamento da dimensão dos danos. Para elas, o setor do RS “não precisa de crédito a juros baixo para o seu soerguimento, mas sim de um efetivo resgate pela União, com custeio de danos comprovados pelas empresas pequenas, média e grandes que tenham sido afetadas pelas enchentes”.
Conforme a ACP, “A omissão da União em efetivamente compartilhar adequadamente os prejuízos com as empresas certamente gerará, no médio e longo prazo, problemas econômicos muito mais profundos – como a imediata perda de liquidez e investimentos, comprometendo a produtividade e inovação dos setores, atingindo obviamente de forma direta o Estado do Rio Grande do Sul, mas também indiretamente todo o Brasil.”, e isso obviamente causará um empobrecimento da população do RS.
A ACP explica que a reponsabilidade da União, conforme disposto no Art. 21, XVIII da CF, que de determina que Compete à União planejar e prover a defesa permanente contra as calamidades púbicas , especialmente as secas e as inundações, “não é o único fundamento que a torna responsável pelos prejuízos do desastre, pois também possui responsabilidade objetiva em razão de sua omissão em agir para a prevenção dos impactos socioeconômicos.
Dentre seus fundamentos, a ACP destaca a omissão da União nos anos que precederam às enchentes, e que, portanto, é responsável “por danos morais coletivos ambientais, patrimoniais históricos e paisagísticos sofridos pelo Rio Grande do Sul.”.
A petição, inclusive menciona, que no ano de 2014, “foi encomendado, pela gestão da então Presidente Dilma Roussef, o projeto “Brasil 2040: Cenários e Alternativas de Adaptação à Mudança do Clima”, composto por uma série de relatórios que já projetavam, em um futuro próximo, fortes elevações do nível do mar, piora nas secas do Nordeste e aumentos extremos de chuvas no Sul do País.”, conforme consta na página 20 do Resumo Executivo do Projeto Brasil 2040.
Sem culpar especificamente ou retirar a responsabilidade de nenhum dos presidentes do Brasil até os dias de hoje, a petição menciona que “Entretanto, nenhuma medida concreta foi tomada pela União para buscar evitar, mitigar ou preparar a infraestrutura e a população do Rio Grande do Sul para o que aconteceria nos meses de abril e maio de 2024.”Além disso, a inicial destacou a teoria do risco administrativo, que estabelece a responsabilidade objetiva do Estado, admite a modalidade omissiva e fundamentou que a responsabilidade objetiva do Estado está prevista no artigo 37, 6º, da CF, que determina que “As pessoas de jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa.”
Consoante a ACP , “tem-se que a omissão do Governo Federal – tendo a União dever de agir, sobremaneira diante de obrigações e responsabilidades tão graves, importantes e evidentes, sobretudo por dizer respeito às questões ambientais e às mudanças climáticas – implica justamente em sua responsabilização”. Ademais, “se o Governo Federal já possuía conhecimento dos riscos, deveria ter atuado para evitá-los”.
As Autoras da ACP alegam que “Se havia dever constitucional de agir em razão da norma do art. 21, inciso XVIII, da Constituição Federal, que prevê que compete à União a defesa permanente em situações de calamidade pública, e a União – mesmo tendo conhecimento de riscos de enchentes e eventos climáticos intensos – nada fez para proteger a população, é evidente que possui responsabilidade pela compensação dos prejuízos causados, uma vez materializado o risco, como ocorreu desastrosamente e em nível gravíssimo no estado do Rio Grande do Sul”. Além disso, mencionam que “a omissão da União em agir para prevenir ou mitigar os efeitos das enchentes caracteriza hipótese de responsabilidade por danos morais coletivos, nos termos do art. 1º, inciso I, III, IV e VI e VIII, da Lei da Ação Civil Pública28”.
Saliento que fiz um apanhado bem sintético dessa ACP, e que ela em momento algum politizou a questão, permaneceu focada na responsabilidade da União e na necessidade de ajuda a um Estado que compõe a federação. Ademais, jamais discutiu a responsabilidade do Estado do RS e dos seus municípios, ela não postula ou tem o condão de afastar a responsabilidade dos demais entes políticos, por seus erros, falhas, omissões etc.
A responsabilidade desses entes políticos e seus agentes ainda dará muito assunto, e imagino que a interpretação quanto ao conteúdo e extensão do previsto no artigo 21, inciso XVIII, pelo judiciário possa decepcionar os apoiadores da ACP. Torço para que essa ACP tenha sucesso, pois o RS virou terra arrasada, e precisa de muito apoio para que volte a se reerguer, gerar trabalho, bem estar para a sua população e recursos importantes inclusive para os demais Estados da Federação.
Foto da Capa: Reprodução Rd Encantado
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