Compreender a si mesmo é um processo complexo e contínuo, que exige paciência, tolerância e um olhar atento para as múltiplas camadas que constituem a subjetividade humana. Como bem afirmou Jiddu Krishnamurti, “compreender a si mesmo requer paciência e tolerância”. A jornada do autoconhecimento não é linear nem isenta de desafios; ao contrário, demanda um tempo próprio, no qual nos deparamos com as contradições inerentes à existência. Esse tempo, paradoxalmente, tanto desgasta quanto multiplica, pois é um espaço de perdas e ganhos, de avanços e retrocessos.
As ambivalências da vida requerem uma estrutura interna capaz de conter tais oscilações, impedindo que se tornem forças descontroladas e destrutivas. A metáfora do vaso, que remete à capacidade de contenção psíquica, é essencial nesse contexto. A noção de continência, cara a Bion, sugere que a mente deve ser um recipiente suficientemente robusto para lidar com as tensões emocionais. As perdas e os conflitos são inevitáveis; contudo, embora não possamos evitá-los, podemos desenvolver estratégias para enfrentá-los sem recorrer a defesas psíquicas excessivamente rígidas. No estudo de Melaine Klein, Dick, o garoto descrito no artigo “A Importância da Formação de Símbolos no Desenvolvimento do Ego” (1930), utilizou um mecanismo defensivo extremo para evitar o contato com seus afetos, interrompendo assim a formação de símbolos e afastando-se de suas emoções. Esse tipo de defesa, porém, não favorece um desenvolvimento saudável. É imprescindível permitir-se sentir, inclusive as ambivalências que nos atravessam.
“O ‘eu’ é um livro de muitos capítulos que não podem ser lidos em um único dia”, disse Krishnamurti. De fato, não acredito que seja possível ler todos os capítulos do livro da nossa própria identidade. A integração do self nunca é completa, pois sempre haverá partes de nós que permanecerão desconhecidas. Em seu artigo “Sobre o Desenvolvimento do Funcionamento Mental” (1958), Klein propõe uma mudança radical na compreensão do superego. Segundo ela, há objetos persecutórios que não podem ser integrados e, portanto, são relegados a camadas mais profundas do inconsciente. Isso significa que a integração plena de todas as partes do psiquismo exige perdas inevitáveis. Dessa forma, a incompletude e a solidão tornam-se aspectos inerentes à existência humana.
Entretanto, mesmo sem alcançar uma leitura total de nós mesmos, é possível desenvolver compreensões profundas. Mais do que uma trajetória linear, o autoconhecimento exige uma relação significativa com o caminho percorrido. Devemos abandonar o desejo infantil de tudo possuir e, em vez disso, aceitar e valorizar aquilo que é possível. A busca por novidade, por aquilo que concede sentido e faz fluir a vida, torna-se essencial. Uma das belezas da integração é justamente a lucidez diante do real: reconhecer o sol quando ele brilha sobre nós e perceber a chuva quando ela se faz presente. Essa clareza pode ser difícil de sustentar, mas é profundamente fértil e necessária.
A vida se desenrola em um plano onde a onipotência é uma ilusão. Falhamos, erramos, mas o reconhecimento dessas limitações nos permite reparar, evoluir e crescer. A verdadeira maturidade consiste em aceitar essa dinâmica e utilizá-la para construir um caminho mais autêntico e significativo. Assim, seguimos, não em busca de uma compreensão total, mas de uma compreensão suficiente para vivermos com maior consciência e profundidade.
Ralf Diego Silva de Souza é psicólogo e professor universitário. Atualmente, é mestrando em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e possui especialização em Psicologia Hospitalar pela ESUDA. Dedica-se ao estudo aprofundado de temáticas concernentes à Psicanálise Kleiniana, Marxismo, Teoria Crítica e Escola de Frankfurt. ralfsouzapsi@gmail.com
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