Minha reflexão aqui não tem a pretensão de discorrer sobre as escolhas de cada um em relação ao que assistir no cinema ou na TV. Mas sim, talvez, levar a perguntas que nos permitam chegar a possíveis reflexões.
No trem, no ônibus, nos shoppings, a onda rosa toma conta levando adultos e crianças a viajarem em um imaginário que os remete à infância ou a magia construída pelo marketing.
Quando criança não tive a famosa boneca Barbie. Era inacessível financeiramente pra minha família e eu recebia uma boneca, a versão brasileira dela, sua prima pobre, a Susi. Tive também bonecas de pano. Hoje, uso outras bonequinhas artesanais, também de pano, como instrumento de trabalho e de conscientização.
A Susi era o padrão mais perto da Barbie que eu poderia me imaginar: alta e magra. A minha tinha também o agravante de ter poucas opções de roupas, cabelos mais escuros e menos lisos que o da prima rica norte-americana. Além disso, esse cabelo só preenchia as laterais da cabeça, o que me deixava muito triste.
Percebem o lugar em que desde crianças vamos sendo inseridos? Na imagética, a limitação da boneca, a prima pobre, me levavam ao lugar em que eu poderia ser aceita enquanto criança negra.
Minhas vizinhas e eu vivíamos situações antagônicas: elas tinham a fartura da mesa familiar e dos brinquedos, a beleza dos cabelos e das inúmeras bonecas, a espera do aniversário para serem presenteadas e o alcance dos desejos na hora em que quisessem.
Eu apenas desejava estar do outro lado do muro.
Essa construção lúdica do brincar me atravessou enquanto criança negra da década de 1980 e me levou a repetir alguns modos de vida na primeira infância das minhas filhas.
Por aqui passavam o rosa e o lilás, as pollys e as barbies. Sim, eu quis dar para as minhas filhas o que a criança Fernanda não recebeu. Queria através delas dizer: vocês podem ser “como elas”.
Precisei de muito tempo para entender as marcas do racismo em mim e poder ressignificar a minha vida de mulher negra na minha relação com a maternidade. Isso inclui a fuga da força midiática e a luta contra a necessidade de nos fazermos caber em experiências, que não nos fariam falta enquanto pessoas pretas.
Entre Barbies e Kens, permanecemos negros! Ouso parafrasear a fala de Sueli Carneiro que nos diz “Eu, por exemplo, entre esquerda e direita, continuo sendo preta” (“Caros Amigos” n° 35, fevereiro de 2000).” A frase usada em um contexto político em São Paulo nos lembra que temos um lugar, uma agência identitária em tudo que fazemos e, em especial, nas escolhas que emergem da nossa visão de mundo.
Precisamos com muita força projetar um mundo negro, com base africana, para nós e para nossas crianças. Um mundo que venha repleto de referenciais capazes de fortalecer a identidade, a espiritualidade e a compreensão da força coletiva de nosso povo que nos leva para um mundo menos rosa, nos fazendo assumir um papel nas encruzilhadas da vida.
Escrevo essas linhas com convicção, mas não pense que as circunstâncias da minha vida e da minha casa não peçam atenção. Minha filha mais nova há algumas semanas me disse: – Mãe, vou assistir à Barbie com meus amigos.” Oi??? Sim, o fato me gerou um desconforto, mas também, a possibilidade pedagógica de deixá-la assistir e com a bagagem que já possui de conhecimentos, conseguir fazer uma análise do filme comigo depois.
Voltarei a lhes escrever para contar a sequência dos acontecimentos…
Continuam comigo?
Fernanda Oliveira é pedagoga pela UFRGS, mãe, professora, fundadora do Projeto Social Oorun que atua na afrobetização de crianças negras, cofundadora do coletivo de Profes Pretas, gestora de Filosofia e Cultura na Odabá.
Foto da capa: Marlon Laurencio