Quando eu era pequena, montei um hospital clandestino de animais na área de serviço de casa. Meu pai era um tanto rude e achava que era bobagem recolher os passarinhos caídos dos ninhos. Sorte a minha que havia esse canto da casa onde ele raramente colocava os pés.
Tínhamos ali uma mesa grande de madeira que a Dona Áurea usava para passar as roupas uma vez por semana.
Dona Áurea foi uma das pessoa mais doces que conheci. A pele muito negra contrastava com os cabelos brancos. Ela era alta. Nem gorda, nem magra. Os dedos das mãos eram longos. Caminhava com um pouco de dificuldade. Estava sempre vestida com uma saia comprida e camisa branca de botões e mangas curtas. Dona Áurea também vivia com um lenço de tecido nas mãos que usava constantemente para pressionar os olhos.
Ela tinha olhos acinzentados e isso me chamava a atenção. Hoje, sei que a cor opaca era resultado de uma catarata não tratada. Ao chegar pacientemente transferia as caixas com meus bichinhos para um canto do quarto de serviço. A mesa, então, virava seu móvel de trabalho. Ela forrava-a primeiro com um cobertor, depois com umas três camadas de lençóis brancos já amarelados pelo calor do ferro de passar.
Quando eu chegava da escola, no dia em que Dona Áurea estava, a casa tinha um aroma diferente. Ela usava um paninho molhado para umedecer a roupa e quando encostava o ferro quente o vapor perfumado tomava conta do ambiente.
Eu corria para a área e ela me dava um abraço carinhoso. O cheiro do vapor se misturava com o do talco que ela própria usava no corpo. Aquele abraço aquecia meu dia. “Oi, minha filha”, Dona Áurea sempre dizia.
Ao final da jornada e com as pilhas de roupas passadas, Dona Áurea me ajudava a recompor o hospital dos bichinhos.
No mesmo dia que vinha a Dona Áurea, vinha também o Seu Zé, que era conhecido com “freguês”. Não sei se era coincidência, mas me lembro dele chegando na parte da tarde com um enorme saco de juta nas costas cheio de laranjas. Franzino, um pouco corcunda, a pele maltratada pelo sol, mas sempre com um sorriso no rosto mesmo que lhe faltassem alguns dentes. Freguês tinha a barra da calça dobrada até o meio da canela deixando visível os sapatos bastante gastos. As pernas dele eram arqueadas e o peso do saco de laranja fazia com que andasse arrastando os pés.
Eram laranjas grandes e doces. Ele despejava as frutas no cesto, recebia o pagamento e partia. Seu Zé também se preocupava com meus passarinhos. Algumas vezes me dava um punhado de alpiste enrolado em um saquinho plástico.
Dona Áurea e Seu Zé eram os meus cúmplices naquele propósito de salvar vidas. Eu era a médica e eles os enfermeiros.
Além dos pássaros filhotes, resgatei lagartixas com o rabinho partido, borboletas que não voavam, um cãozinho e um certo dia um gato bebê que miava embaixo de um arbusto. Já não era possível manter minha “enfermaria” escondida e meu pai deixou que eu seguisse, mesmo que a contragosto. Foi nesta época que aprendi que alguns animais não deveriam estar juntos.
Uma tarde cheguei da escola e um dos pardais não estava onde deveria. A caixinha dele estava vazia. O corpinho eu não encontrei, mas algumas poucas penas ainda estavam espalhadas pelo chão. Não sei quem recolheu o passarinho morto para que eu não o encontrasse, contudo tenho quase certeza que as penas esquecidas foram para me contar “sem contar” o que tinha acontecido. Tudo o que vive um dia morre, seja de uma forma ou de outra. Na natureza alguns deles se defendem melhor.
Em um dado momento desisti do hospital, mas nunca de ter animaizinhos por perto. E foram muitos. A alegria do convívio e a dor da perda se alteram quando decidimos compartilhar momentos com eles. De cada um guardo uma história e um aprendizado.
Contei aqui recentemente a história do nosso cãozinho Noé e da dor que foi ter que colocar ele “para dormir “. Estes dias vi uma publicação de uma pessoa da família se despedindo do gatinho que esteve com ela nos últimos dezessete anos. Senti um pouco da dor que ela está sentindo.
O sentimento me motivou a escrever o texto, e o texto me fez voltar à infância. As lembranças me trouxeram Dona Áurea e Seu Zé. E o abraço gostoso. E o sabor das laranjas. E os sorrisos generosos destas duas pessoas que um dia cruzaram meu caminho.
Entre o real e a fantasia e pelos meandros da memória fui tecendo esse conto. Não há como separar o sonhado e o vivido, o real e o imaginado, mas gosto da versão que minha mente criou do tempo e espaço vividos, reafirmando a beleza da vida, das pessoas que deixam pegadas na nossa alma e destes seres que nos dão tanto sem pedir nada em troca.
Um beijo Dona Áurea e Seu Zé, estejam vocês onde estiverem, e obrigada por se importarem pelo que me era tão importante.
Vou resgatar a história de cada um dos meus bichinhos e na semana que vem tem mais.
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Foto da Capa: Freepik
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