Crianças são muito atentas ao que se passa entre os adultos, e eu era uma delas. Ficam ainda mais ligadas nos conflitos entre eles, e eu também ficava. Meu pai e meu avô tinham um enorme conflito. Trabalhavam juntos, mas o pai bem mais: o avô ficava criticando aquela trabalheira toda do seu filho. Acostumado à penúria financeira que o acompanhou durante a maior parte de sua vida, o velho mais velho preconizava aproveitar o que restava para viver. Dispensava precauções ou qualquer acúmulo de ordem material.
E como aproveitava! Passava boa parte do dia tomando chimarrão, fumando palheiro ou cachimbo, contando as horas para tomar Underberg, seu aperitivo sagrado, antes de cada refeição. Curtia Capão da Canoa nas férias, onde fumava mais o palheiro. Lembro do tempo em que eu era criança e veraneávamos juntos. Com a vista cansada, o vô me chamava para checar se o rolo comprido no chão da sala do pequeno apartamento era o seu fumo ou cocô do Nick, o cachorro. Eram tão parecidos que precisava também agachar-se para cheirar.
Em Porto Alegre, o vô também gostava de caminhar até o Centro da cidade, vindo do Bom Fim e cruzando a Redenção. Comprava chocolates para si, para os netos e, na volta, refazia o caminho. Ele adorava, sobretudo, encontrar gente para contar e ouvir alguma piada ou outras histórias menos alegres. Não que o pai não aproveitasse as horas de folga. Curtia uma sesta (breve), uma partida de tênis um pouco mais demorada, estar com os amigos, entre outras pequenas grandes fruições. Mas eram horas curtas, especialmente se comparadas às de seu próprio pai, talvez porque o meu tivesse provado por mais tempo uma vida menos dura, daí o duro que dava, durante boa parte do dia e da semana, para tentar mantê-la.
Por isso, sob os olhares indecisos do neto, pai e filho se bicavam num verdadeiro remake intrafamiliar da formiga e da cigarra. Eu, criança, era tão ligado ao embate que acabei não tomando partido de nenhum dos dois protagonistas. Ou, pelo contrário, tomei o dos dois. Hoje, quando engato no trabalho, dou de meu pai e não sossego enquanto não atender muita gente que precisa e terminar de escrever o livro que eu mesmo preciso fazer. Quando termino as labutas, dou de meu vô e me lanço longamente a prazeres como ler o que desejo e caminhar sem rumo. Nas pausas das pausas, incluo um chocolate e uma piadinha ou outra história para contar e ouvir. Palheiro e chimarrão estão incluídos esporadicamente. Só dispenso o Underberg, mas nem sempre.
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Foto da Capa: Gerada por IA.