O direito das pessoas com deficiência ao trabalho foi defendido em recente fala do Papa Francisco, quando afirmou que “uma forma grave de discriminação é excluir alguém da possibilidade de trabalhar. O trabalho é dignidade; é a unção da dignidade. Se você exclui a possibilidade, você tira isso.”
O Pontífice ressaltou que “toda pessoa é um dom precioso para a sociedade” e “a inclusão de pessoas com deficiência deve ser reconhecida como uma prioridade por todos os países”, disse que além de “adaptar as estruturas”, é preciso “mudar a mentalidade” da sociedade com uma “acessibilidade universal”, “de modo que todas as barreiras físicas, sociais, culturais e religiosas sejam removidas”, desde a infância até a terceira idade.
O discurso papal se deu em um encontro com ministros e representantes dos países que compõem o G7, ou Grupo dos Sete, que reúne os sete países mais industrializados do mundo, e que traziam a Carta Solfagnano, documento elaborado durante reunião dos ministros do G7, realizada na localidade de Solfagnano, na Itália, na segunda quinzena de outubro.
O objetivo principal da carta é reafirmar o compromisso dos países do G7 para a inclusão das pessoas com deficiência em todas as esferas da vida, como uma política de Direitos Humanos, tratando a inclusão como um assunto prioritário na agenda dos países do Grupo. A participação, o protagonismo das pessoas com deficiência, a acessibilidade, a dignidade e o direito a serviços comunitários adequados e acessíveis estão entre os principais pontos do documento.
O documento enfatiza que a inclusão no mercado de trabalho é um direito humano para pessoas com deficiência. Ela destaca a importância da participação e inclusão dessas pessoas no ambiente laboral, afirmando que isso não apenas promove a independência econômica, mas também contribui para o bem-estar social e a qualidade de vida. Já o Papa lembra que a dignidade e o direito ao trabalho estão ligados. O mesmo raciocínio é compartilhado por Rafael Giguer, que em seu livro “Vidas Além da Cota” aponta que o direito ao trabalho e à dignidade é para todos e que o “trabalho é um meio para a verdadeira inclusão e dignidade”.
Rafael se define, em sua obra, como “Primeiro Auditor-Fiscal do Trabalho e Engenheiro de Materiais, que também é Astrólogo, Massoterapeuta, Cartomante, Hipnotista, Palestrante, Ator, Dançarino – e agora também Escritor. Ah, e deficiente visual, mas isso é só mais uma característica”. Sim, Rafael é cego e conta em sua obra histórias de sua vida pessoal e profissional, como auditor-fiscal do trabalho responsável por fiscalizar o cumprimento da Lei de Cotas. Essa norma, vigente desde 1991, determina que empresas com 100 empregados ou mais reservem um percentual de vagas para pessoas com deficiência em seu quadro de funcionários, sendo fundamental para que elas possam entrar no mercado de trabalho.
A dificuldade de entrar no mercado de trabalho é evidenciada por uma pesquisa do IBGE. A participação na força de trabalho é de 66,4% entre pessoas sem deficiência, enquanto entre aquelas com deficiência esse número cai para apenas 29,2%. Essa desigualdade se mantém independente do nível de escolaridade do indivíduo.
Outro dado que destaca a disparidade é o índice de ocupação, que inclui pessoas que exercem trabalho remunerado, trabalho doméstico ou estão temporariamente afastadas. Apenas 26,6% das pessoas com deficiência estão ocupadas, em comparação com 60,7% da população sem deficiência. Além disso, a informalidade é mais comum entre pessoas com deficiência, com 55% nessa categoria, em contraste com 38,7% para os demais. A média salarial também é inferior, sendo de R$1.860,00 para pessoas com deficiência, enquanto para o restante da população é de R$2.690,00. Ou seja, pessoas com deficiência estão mais sujeitas ao desemprego, à informalidade e ainda ganham menos que os demais trabalhadores.
Essas barreiras aumentam a importância de políticas públicas que busquem abrir o mercado de trabalho às pessoas com deficiência, como as cotas em concursos públicos e em empresas com 100 empregados ou mais. Até porque, como diz Rafael, “se não há lei obrigando ou fiscalização exigindo, o direito ao trabalho desses cidadãos é ignorado, restando o desemprego e a vida sem ocupação.” E, mesmo com esses direitos assegurados pela legislação, ainda é muito comum se ouvir o discurso batido de que não há pessoas com deficiência qualificadas para a função. Como ele conta sua experiência de uma fiscalização que realizou: “A gerente de RH apresentava aquelas velhas desculpas de sempre: não encontrava candidatos, eles não teriam capacitação, não tinham condição de trabalhar lá, blá, blá, blá, etc.”.
O autor percebeu em sua trajetória pessoal e profissional que muitos profissionais de RH e empresários tendem a focar nas limitações das pessoas em busca de emprego, em vez de reconhecer suas potencialidades. Esse preconceito também se reflete em muitos médicos-peritos, que frequentemente rotulam pessoas com deficiência como incapazes de levar uma vida independente ou de trabalhar.
Além disso, há muita resistência em tornar os ambientes mais acessíveis e em fazer adaptações que possibilitem a inclusão de mais pessoas nas atividades, mesmo quando essas mudanças não geram custos adicionais para as empresas.
Derrubar esses obstáculos que são impostos pela sociedade pode ser profundamente transformador, seja para a pessoa com deficiência que tem um resgate de seu valor, de sua capacidade e dignidade, seja das pessoas físicas e jurídicas que a recebem. Para isso, muitas vezes, basta mudar a atitude, as chamadas “barreiras atitudinais”.
Como aconteceu na história de Matias, um trabalhador conhecido por todos na empresa onde trabalha, cumprimentando a todos sem distinção. Pessoa com deficiência física e intelectual disse na entrevista: “Meu sonho é trabalhar”, levando a psicóloga que o entrevistava a avaliar onde ele poderia contribuir de forma produtiva. Rafael nos conta que Matias já está há 3 anos na lavanderia da empresa.
“Bastou a psicóloga da empresa dispensar um pouquinho de seu tempo, respirar e não olhar para Matias com a pressa de um problema a mais do seu dia de trabalho que precisa ser resolvido de forma rápida e fácil”. Bastou ter aquela singela habilidade de olhá-lo como um ser humano com desejo e direito de trabalhar e não como um “alguém-problema” a ser evitado. Perceber seus potenciais de trabalho e não apenas suas barreiras. O olhar de humanidade da psicóloga, o cuidado com o próximo e o respeito à diferença e à dignidade, independentemente da compleição física ou intelectual, mudaram a trajetória da vida de Matias para sempre. Foi um tempinho a mais dedicado à entrevista, uma respirada, um olhar de humanidade e, como consequência, uma vida inteira se transformou.
Conforme lembra o Papa Francisco, “toda pessoa é um dom precioso”. Mas, para se enxergar isso, é necessário fazer como a psicóloga que entrevistou o Matias e ver quem está à nossa frente como uma pessoa igual a nós, com medos e sonhos como qualquer outro ser humano. Essa história ilustra perfeitamente como pequenas mudanças de atitude podem ter um impacto profundo e duradouro na vida das pessoas com deficiência. Um olhar de cuidado e de acolhimento tem poderes surpreendentes, como Rafael Giguer nos faz enxergar em seus relatos de “Vidas Além das cotas.”
Foto da Capa: Freepik
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