A casa em que Caio Fernando Abreu morou nos últimos anos de sua vida, na Rua Oscar Bittencourt, no Menino Deus, em Porto Alegre, foi demolida na semana passada, gerando um bom número de reações que vão da perplexidade ao quase-luto. Foi, ao menos na bolha deste que vos escreve, um dos poucos assuntos que pareceram ganhar tração para escapar da gravidade (em mais de um sentido) gerada pela voragem de ameaças e absurdos do governo federal. E, em muitas das reações que li ou testemunhei, havia também um elemento inusitado de indignação em retrospecto. Muitos que se manifestaram sequer sabiam que a casa foi objeto de uma campanha destinada a salvá-la ainda no início da década passada, nem tinham ideia de que resultados foram obtidos com ela. Repórter na época em que a mobilização começou, eu acompanhei a coisa no início, mas não tive mais notícias depois de um tempo, então fui procurar algumas pessoas que me ajudassem a resgatar os passos do movimento.
Um dos textos que li sobre o caso comentava que as reações à demolição eram exageradas, já que a decisão teria sido da família. O texto em que li essa declaração não deixava claro de que família falava, mas deixava no ar a interpretação possível de que fosse a família do próprio Caio. Se sim, temos aí um equívoco, já que a família do escritor não tinha mais nenhum poder sobre o destino do imóvel há quase duas décadas.
A casa havia sido construída em 1941 – era, portanto, apenas sete anos mais velha do que o próprio Caio, que nasceu em 1948 em Santiago, primogênito do casal Zaél Menezes de Abreu e Nair Loureiro de Abreu. A família se mudou para o imóvel do Menino Deus em 1968 – Caio, então 20, passou pouco tempo por ali antes de se mudar para São Paulo para iniciar uma carreira como jornalista. Após a morte dos pais do autor, seguiram-se questões judiciais que levaram o imóvel a um leilão em 2006, no qual foi arrematado por um corretor imobiliário. O corretor contou na época que teria comprado a casa para morar nela, mas o imbróglio com o inventário foi tal que, quando o novelo finalmente foi desenrolado, já havia se instalado com a família em outro imóvel, então o colocaria à venda ou para aluguel. Aí já estávamos em 2010 – sei disso porque fui o autor de uma matéria que ocupou a capa e parte da página central do Segundo Caderno de Zero Hora sobre esse movimento.
A campanha
Sabendo que a casa estava à venda, um grupo de admiradores de Caio começou a se mobilizar para tentar fazer do lugar um centro cultural ou museu em sua homenagem. Enquanto a venda ainda era uma possibilidade, foram cogitadas várias hipóteses para sua preservação. Que fosse comprada ou alugada pelo município para transformação em um centro cultural era uma delas. O então Secretário de Cultura Sergius Gonzaga lembra de falar com a líder do movimento, em uma intermediação feita pelo então coordenador de comunicação da Secretaria Municipal de Cultura (SMC), Marcelo Oliveira da Silva: Sergius lembra da reunião, bem como de ter alertado que o processo poderia ter desdobramentos mais complicados do que os esperados:
– Na ocasião fui bem claro, tombar um imóvel por seu valor simbólico e cultural era uma hipótese a ser considerada e não inteiramente impossível. O que deveria ficar bem claro, no entanto – falei isso para a moça- é que esta casa não poderia ser mantida pela Prefeitura e que para um estudo do tombamento da casa era incontornável a existência de uma organização devidamente registrada e que ficasse responsável pela futura gestão do espaço – diz o professor e ex-secretário.
A Associação Amigos do Caio F. foi constituída no segundo semestre de 2010, liderada pela produtora cultural Liana Farias Carneiro de Sá, e uma campanha foi lançada para angariar recursos para a preservação da casa, com a adesão de nomes importantes da cena cultural como a escritora Martha Medeiros, a astróloga Amanda Costa, a jornalista Katia Suman e o ator Marcos Breda. A iniciativa das Leituras Itinerantes Caio F. chegou a ser esboçada para angariar recursos, e uma primeira edição foi realizada ainda em dezembro de 2010, no bar Ocidente.
O projeto logo perderia esse primeiro propósito, mas seguiria em atividade como homenagem ao escritor. Apesar de haver sinalizado simpatia pelo movimento se houvesse uma boa proposta, o corretor proprietário logo a vendeu para uma família em janeiro de 2011. Com isso, o movimento se desmobilizou, uma vez que as possibilidades de compra, aluguel ou tombamento tornavam-se mais remotas, embora ainda houvesse a intenção de seguir tentando criar um centro em memória de Caio. Ainda assim, em junho de 2011, surgiu uma ideia.
A placa
Uma das criadoras do movimento, a psicóloga Andrea Beheregaray, então vizinha do imóvel, falou com a família que morava à época no local, após a reforma da casa. Propôs a iniciativa de marcar a casa com uma placa sinalizando aquele como o lugar dos últimos anos de vida de Caio. Os donos disseram que não tinham nada contra. Andrea então levou a iniciativa ao então coordenador de comunicação da SMC, o jornalista Marcelo Oliveira da Silva, que fez a intermediação com a gestão municipal da cultura.
“Aproveitei meu contato com a Secretaria da Cultura para conseguir o aval e criar uma espécie de concurso, digamos assim, em que as pessoas iam escolher e sugerir frases do Caio para figurar na placa essa, que a gente ainda não sabia como ia ser, se ia ser de metal, de mármore etc. Primeiro pensava-se em 10 frases, passou pra sete, para cinco e ficou em uma. E essa consulta era feita via internet, diferentes formas de divulgação, esse processo demorou alguns meses. Chegou-se a uma única frase. – recorda ele.
A votação foi aberta por Andrea no blog destinado à preservação da casa, ainda no ar hoje. A placa foi feita em granito – de acordo com Oliveira, se fosse em metal haveria o risco de furto para derretimento, como ocorre rotineiramente nas estátuas e monumentos de Porto Alegre. Ficou pronta em fevereiro de 2012 e chegou a ser divulgada em redes sociais e em sites. A frase escolhida veio do diário inacabado escrito por Caio durante sua temporada em Londres, em 1974, mais tarde publicado na coletânea de esparsos Ovelhas Negras (1995): “Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica de mim em mim é cada vez mais essencial e verdadeiro“.
Curiosamente, a frase foi gravada na pedra de um modo diverso da versão que consta no livro (ao menos na edição que eu tenho aqui, a de bolso da L&PM, datada de 2002), e ficou “Depois de todas as tempestades e naufrágios, o que fica DE MIM é cada vez mais essencial e verdadeiro”, um arranjo que altera sutilmente o significado original. Oliveira da Silva, consultado, não soube dizer qual foi o momento em que ocorreu o equívoco, já que a frase estava certa no momento da consulta.
Definida a frase, começou-se o xadrez de marcar a data para a colocação. Andrea fez o contato com a família, mas várias vezes a marcação de uma data não foi adiante pelo lado da Prefeitura. Segundo ela, Oliveira da Silva sugeria sempre esperar uma efeméride que pudesse se encaixar nas regras da Prefeitura para colocação desse tipo de marco. Razões políticas também foram alegadas para a demora, uma vez que a secretaria trocou de comando no meio do caminho, com o editor Roque Jacoby assumindo no lugar de Sergius Gonzaga. Oliveira diz que Jacoby não tinha grande simpatia pela obra de Caio. O então secretário Jacoby nega.
– Sempre tive enorme apreço pelo Caio, a tal ponto que lancei pela Mercado Aberto o título Mel & Girassóis – diz, e prossegue:
– A placa jamais foi instalada na casa do Caio porque simplesmente o Sr. Marcelo Oliveira, após ter sido exonerado das funções na SMC, levou-a e a manteve em sua casa, apesar dos apelos para devolvê-la.
Oliveira da Silva foi desligado do comando da comunicação da Secretaria Municipal de Cultura em março de 2013. De acordo com ele próprio, após a saída não de todo amigável, uma vez que teria sido demitido sem aviso no meio de uma viagem para participar de um evento internacional, a placa não foi devolvida porque, de acordo com o jornalista, ele suspeitava que a equipe da SMC não estava disposta a dar o devido crédito aos autores da ideia, Andrea Beheregaray e ele. A situação chegou a um impasse – agravado por outras rusgas posteriores entre a SMC e Oliveira da Silva, integrante da Associação de Moradores da Cidade Baixa e criador do movimento SOS Cidade Baixa, contrário aos extensos carnavais de rua realizados no bairro.
– Eu não me negava a devolver a placa, eu condicionava à divulgação correta de como se deu a iniciativa toda, o crédito que a Andreia e eu devíamos receber. Chegamos ao ponto de eu inclusive redigir releases com os dados necessários a essa parte, ficando o resto do texto e a divulgação com a comunicação da SMC, claro. O ponto é que aquilo não andou.
A casa e o acervo
A placa ainda está com Oliveira da Silva. Sua colocação, é necessário lembrar, talvez não impedisse a demolição ocorrida na semana passada porque ela era um marco simbólico em um imóvel não tombado. Ainda assim, Andrea Beheregaray – que agora está idealizando (e conseguindo realizar) um memorial a Anita Garibaldi em uma casa de 200 anos de idade em Laguna (SC), vê com tristeza o andamento do episódio.
– Se essa placa tivesse sido colocada em 2012, tinha virado ponto turístico e, talvez, teriam tombado – comenta ela.
Por um breve momento ainda lá no início da campanha, chegou a ser considerado que a casa e o acervo de Caio pudessem seguir trajetórias conjuntas. Na época em que se formou o movimento para tentar salvar a casa, os mais de mil itens que compunham o acervo, desde textos inéditos, correspondências, fotografias e fortuna crítica até objetos de uso pessoal, estavam sob a guarda do Instituto de Letras da UFRGS, que o disponibilizava apenas para pesquisadores e encontrava sérias dificuldades para realizar o processo de digitalização do material.
As discussões sobre o destino da casa levaram um dos criadores do movimento, o escritor Fábio Fabrício Fabretti, a lançar a ideia de que o acervo fosse abrigado na casa, transformada em um centro cultural, por exemplo. Uma ideia que encontrava ressonância com a então direção do acervo na UFRGS.
A proposta de deixou de ser cogitada depois que a casa foi vendida. Uns anos depois, o acervo foi repassado à responsabilidade do centro de documentação Delfos, da PUCRS, onde está hoje como centro de pesquisa do legado literário de Caio.
Caio e a casa
Um último comentário: entre as repercussões da demolição, li comentários de que a casa não era realmente significativa na biografia de Caio a ponto de sua derrubada gerar a comoção que gerou, mas aí discordo com veemência. Está certo que Caio ocupou realmente o lugar por apenas dois anos de sua vida adulta, mas não foram dois anos aleatórios, foram os seus últimos. Após uma vida desbravando o mundo, Caio retornou a Porto Alegre em 1994 após ter sido diagnosticado com o HIV, algo que ele tornou público em três crônicas intituladas Cartas para Além dos Muros, publicadas no Estadão em agosto daquele ano. As duas primeiras, elípticas e imagéticas, apenas deixavam entrevista a admissão de suas angústias com o diagnóstico. A terceira, mais direta, esclarecia tudo. Os “muros” citados no título eram, originalmente os do cemitério no outro lado das grades do Hospital Emílio Ribas, onde Caio foi internado após se consultar para descobrir a razão de alguns sintomas que o afligiam no retorno de uma viagem à Europa. Ao concluir o texto, fazendo uma profissão de fé na vida e na luta contra a doença, Caio dizia textualmente que os muros agora eram outros. Os da casa agora destruída:
“Os muros continuam brancos, mas agora são de um sobrado colonial espanhol que me faz pensar em García Lorca; o portão pode ser aberto a qualquer hora para entrar ou sair; há uma palmeira, rosas cor-de-rosa no jardim. Chama-se Menino Deus este lugar cantado por Caetano, e eu sempre soube que era aqui o porto. Nunca se sabe até que ponto seguro, mas – para lembrar Ana C., que me deteve à beira da janela – como não se pode ancorar um navio no espaço, ancora-se neste porto. Alegre ou não”.
Finalizando
Como se vê pelo tom do trecho, a volta a Porto Alegre não era uma circunstância feliz, antes uma aceitação resignada, mas insatisfeita. Até nisso a casa tem sua importância na biografia de Caio, como documentado nas crônicas que ele escreveu a partir do retorno, compiladas em um de seus últimos livros, Pequenas Epifanias. Os textos ali reunidos traduzem a difícil aceitação da própria finitude e oscilam entre o sereno e o passional no balanço que fazem de suas esperanças, seus medos e sua relação com a Capital. Muitos deles têm por cenário a casa na qual, como o equivalente arrebatado de um mestre zen, Caio reflete sobre o que estava descobrindo a respeito da própria vida e da vizinhança do Menino Deus, em um processo de relutante conciliação com a cidade da qual ele havia se afastado tanto tempo antes – “Manaus no verão e Moscou no inverno”, como definiu em outro texto da mesma coletânea:
“…não é verdade que eu esteja apaixonado por Porto Alegre. Somos apenas bons amigos. Aliás, nem moro em Porto Alegre. Moro no Menino Deus, do qual Porto Alegre é apenas o que há em volta. Além disso tenho sérias críticas à cidade, e você deve saber que quando se está apaixonado fica-se cego. Pois Porto Alegre não me causa nem mesmo certa miopia metafórica, além da minha progressiva, nenhum poético astigmatismo, além do real das minhas, como diria Drummond, retinas fatigadas. Vejo de óculos todos os seus defeitos”.
Andrea Beheregaray ainda foi uma das pessoas signatárias de uma ação civil pública impetrada para tentar impedir a demolição do imóvel após a repercussão. Ela também lamenta que não houve tempo. O destino da casa de Caio representa, na visão deste seu escriba, um drama urbanístico não pelo seu sentido particular, e mais pelo que representa como sintoma. Foi uma grande oportunidade perdida, assim como foram outros tantos episódios em que a lógica da especulação imobiliária e dos “grandes empreendimentos” triunfou sobre a simples tentativa de parar e pensar uma alternativa ao espaço urbano que não fosse mandar uma patrola passear sobre uma casa antiga. Ao mesmo tempo, reconheço que, ao repassar essa história, não vejo um momento-chave em que se possa dizer: AQUI, aqui, se perdeu a casa, mostrando que tristezas assim se engendram numa certa pasmaceira que já é hábito e é sacudida apenas pela indignação. Como disse a colunista deste site Cláudia Laitano em um texto recente:
“No final das contas, a sensação de derrota que muitos de nós, leitores de Caio, experimentamos ao ver sua casa demolida é mais pelo que a cidade perdeu do que pelo que o escritor deixou de ganhar”