Era uma vez um porto. Há alguns séculos, por lá chegaram alguns casais na terra prometida. Tudo começou na ponta da península, onde depois viria a ser construído o falo gigante da futura capital – não à toa um símbolo do patriarcado.
Maravilhados com o pôr do sol à beira do rio, decidiram rebatizar a cidade com o nome de porto – ali chegavam muitos navios, e alegre como seu estado de espírito. Era uma vez um porto alegre.
Descobriram, depois, que o grande rio já tinha nome – Guaíba – em tupi-guarani: lugar onde o rio se alarga.
Era uma vez um porto ainda alegre. Os casais tiveram seus filhos. Os netos e as netas subiram a serra e conheceram outras gentes. Lá havia outros conquistadores, dominaram os nativos, trocaram seus deuses por outros santos, mais pálidos, outros rituais. Eles tinham lá suas missões.
Vieram também outros viajantes, de países ainda mais distantes.
Era uma vez um porto mais alegre. O sol nasceu, o sol morreu, vieram os invernos gelados, teceram casacos, blusões, luvas e toucas de lã. O vento minuano deixava as orelhas vermelhas. Era preciso coragem para enfrentar aqueles invernos dos infernos.
O sol nasceu, o sol morreu, e vieram os verões quentes. Os habitantes suavam noite e dia, então todos se mudavam para o litoral, com praias de areias escuras e o mar cor de chocolate. E lá construíram suas vilas para aguentar o calor dos verões. Algumas praias já tinham nomes, dados pelos nativos:
Imbé – uma planta usada pelos povos da floresta para afastar energias negativas; Tramandaí – em tupi-guarani: rio sinuoso, lugar para pescar com redes; Mampituba – em tupi-guarani: rio de muitas curvas.
Era uma vez um porto muito alegre. Houve um tempo em que um outro mundo era possível. À época, as pessoas pensavam e usavam os pensamentos para construir coisas em prol das comunidades. As coisas aconteceram, foram diretas – e já.
Era uma vez um porto nem tão alegre. Mudaram os ventos. Mudaram os votos. Os ventos foram aumentando, o mundo girando, girando. Vieram as nuvens. As pessoas foram se descuidando, até que se esqueceram. Uns dos outros. Cuidar. Demonstrar amor e compaixão por meio de ações concretas. Mãos unidas e pensamentos convergentes. Olhares com foco na mesma direção. Só que não. Os mandatários foram mudando. Mudando o foco. Não vale o voto. Mas lá naquele lugar as pessoas não aprenderam. Continuavam a ter fé na conversa fiada. Nas promessas vazias. Ficaram desatentas. Sem o mínimo cuidado.
Era uma vez um porto nada alegre. Coberto por uma nuvem cinza-chumbo. Até que choveu sete dias e sete noites. O porto estava aberto, e veio o dilúvio, pior que o outro. Águas de chuvas, águas de lágrimas.
Dali em diante, a cada chuva, um susto, pesadelos, cavalos nos telhados. O fantasma espera em cada esquina, na rua que enche, na árvore que cai. Na luz que falta, escadas às escuras. Lá onde tudo se repete, e o descaso reina sentado no trono da indiferença. E a cidade mudou de nome. Era uma vez um porto triste.
Este é um texto de ficção. Qualquer semelhança é mera coincidência.
Inês Lempek é natural de Porto Alegre RS, psicanalista e escritora. Especialista em Psicanálise e Cultura - UnB. Autora de O avesso do clima, e Entre-laces da palavra (poesias), Bestiário. Antologias: Poesia e prosa (IEL), 102 que contam, 104 que contam (Nova Prova), De tudo um conto (Bestiário), Enchente (Bestiário).
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